domingo, março 11, 2012

Porque Marx estava certo – 3a

Continuando a exploração do livro do filosofo Terry Eagleton (ver video; cap1; cap2) e as respostas a dez das mais comuns objecções ao Marxismo, o terceiro capítulo aborda a seguinte crítica: "O Marxismo é uma forma de determinismo. Vê os homens e mulheres apenas como instrumentos da história, despidos da sua liberdade e individualidade. Marx acreditava em certas leis férreas da história, que funcionariam com força inexorável às quais nenhuma acção humana podia resistir. Como tal a teoria de história de Marx é apenas uma versão secular da Providência ou Destino. É ofensiva à liberdade e dignidade humana, tal como os Estados Marxistas."

Eagleton começa por constatar que há poucas ideias em Marx que sejam originais. Não o são a ideia de revolução, comunismo, socialismo, partido revolucionário, classe social, alienação, luta de classes, o papel central dado à economia, a sucessão de modos de produção ao longo da história. Original foi a importância dada a certos elementos, o seu enquadramento, o entrelaçar. Marx encarou a sociedade não como um todo único, mas divida em classes, com interesses incompatíveis, e que a luta de classes é fundamental para compreender a dinâmica da História. [Houve um percurso significativo entre a plataforma eleitoral de Obama, de união entre estados vermelhos e azuis – Democratas e Republicanos – e o discurso imposto pelo movimento Occupy do confronto entre os 99% e os 1%.]

Apesar de algumas formulações gerais e mais panfletárias, Marx não pretendia implicar que a luta de classes é o único factor que explica tudo na História. Mas que era fundamental, necessário para entender (1) os grandes traços e trajectórias da História, as instituições sociais e formas de pensamento de um dado período, e (2) as transições entre períodos Históricos. O que sim foi original em Marx, segundo Eagleton, foi a ligação entre as ideias de luta de classe e modo de produção, como teoria e prática para explicar as vagas de fundo das alterações Históricas. [Por modo de produção, Marx entendia a combinação de certas forças de produção (e.g., tecnologia) com certas relações de produção. E a classe social era definida através da relação com os meios de produção.] Mas é nesta originalidade que surgem problemáticas e pontos de discussão entre Marxistas.

Marx vê como tendência histórica o desenvolvimento das forças de produção. (O progresso é uma lei geral da história ou um imperativo específico da dinâmica capitalista?) Quando a classe social dominante se revela incapaz de expandir as forças de produção, i.e., surge uma contradição entre as forças de produção e as relações de produção, inicia-se uma revolução social, e ascende a classe social mais capaz de continuar a desenvolver as forças de produção. Ao longo desta ascensão surgem contradições entre riqueza material e moral (e.g., exploração), mas o progresso social assenta no progresso material (não pode haver felicidade sem pão). Nesse sentido, é significativo que certas relações sociais só podem surgir após certo desenvolvimento das forças de produção.

Por esta razão, Marx antevia revoluções socialistas nos países mais industrializados, como a Inglaterra e a Alemanha. Esses países tinham efectivamente uma classe trabalhadora mais militante e organizada, forças de produção mais desenvolvidas, condições materiais mais susceptíveis de sustentarem uma alteração das relações sociais. Mas as suas classes dominantes tinham também maior desenvolvimento de instrumentos de opressão (físicos, económicos e ideológicos). Paradoxalmente, o socialismo no século XX surge em países nos quais as forças de produção estavam menos desenvolvidas (e.g., Rússia, China, Cuba), o que criou fortes condicionantes ao desenvolvimento político e social nesses processos de construção do socialismo. (Ainda assim, são espantosos os avanços de produção industrial na URSS; a democratização do ensino, saúde e habitação na URSS e Cuba, mesmo após o fim do apoio da URSS e sob um implacável bloqueio).

Segundo Eagleton, a alteração das relações sociais não pode ser simplesmente explicada pela expansão/estagnação das forças produtivas. Cada estado de desenvolvimento das forças produtivas oferece oportunidade para uma variedade de relações sociais, não sendo evidente que exista uma classe social revolucionária desenvolvida capaz de levar adiante o progresso das forças produtivas. A ideia determinista que as forças de produção dão origem inexoravelmente a novas relações sociais encara estas como os agentes da História, em vez serem os seres humanos a criar a sua própria história. Eagleton sugere um leitura diferente de Marx, na qual as relações sociais de produção têm prioridade sobre as forças produtivas. Segundo este prisma, o feudalismo criou as condições para a emergência da burguesia; esta não surgiu fruto do crescimento das forças de produção. As forças de produção desenvolveram-se durante o feudalismo por interesse dessa classe, e durante o capitalismo porque este não sobrevive sem expansão constante.

Embora se possa afirmar que ao longo da história existe conflito entre classes, não transcorre que há determinismo na teoria histórica de Marx, pois cada etapa de modo de produção tem as suas próprias leis de desenvolvimento. Podemos relatar a posteriori  como o capitalismo surgiu das achas do feudalismo, mas nada endógeno ao feudalismo implica que dele emerge o capitalismo (mais uma vez, recorde-se a revolução russa). Não há assim, verdadeiramente, em Marx uma visão linear da história ou uma lei histórica que atravesse todo a sua expansão. A incerteza surge, em parte, da liberdade do sujeito humano.

Eagleton cita a este respeito uma passagem de uma obra pouco referenciada de Marx e Engels. «A Sagrada Família ou A Crítica da Crítica contra Bruno Bauer e consortes» (1844):
"A História não faz nada, não possui imensa riqueza, não trava batalhas. É o homem, o homem vivo real que faz tudo isso, que possui e luta; a 'história' não é, como tal, uma pessoa à parte, usando o homem como um meio para atingir os seus objectivos, a história é nada senão a actividade do homem procurando alcançar os seus objectivos."
Qualquer que seja a leitura de Marx em termos do papel atribuído às forças produtivas, Eagleton sublinha, Marx não era um determinista no sentido de negação da liberdade de acção humana. Marx crê na liberdade humana – liberdade que colide com os constrangimentos do momento – e frisa a coragem e consistência como essenciais para a vitória política, e deixa espaço para a influência decisiva do acaso (algo que  colide com a visão de inevitabilidade da vinda do socialismo e o imobilismo que daí pode resultar). Mais que determinismo, Marx sublinha a necessidade histórica, a necessidade de superação da exploração capitalista, pois a alternativa é a barbárie, perspectiva demasiado inquietante para ser sustentável, donde decorre uma esperança de inevitabilidade e o imperativo da luta.

[Estes ensaios sobre o livro do Eagleton são leituras críticas. Pretendem sobretudo apresentar as ideias do livro, e intercalam passagens parafraseadas do livro e reflexões minhas sobre o texto. Embora tenha procurado distinguir os dois tipos de passagem, por razões de expediência, tal nem sempre é claro. Peço a vossa compreensão pela ausência de referenciação mais explícita.]

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