quinta-feira, maio 03, 2012

Marxismo, Darwinismo e Natureza Humana

Intervenção no Congresso «Marx em Maio», 3 de Maio 2012, Faculdade de Letras


Marxismo, Darwinismo e a natureza humana
André Levy

A publicação da obra «Sobre a Origem das Espécies», de Charles Darwin, em 1859, e as ideias nela expostas sobre a evolução das espécies, corroboradas por um volume e diversidade de evidências arrasadora, abriu uma nova era para a Biologia. As ideias foram recebidas com grande entusiasmo por Engels e Marx, que concebiam a história humana como parte da história natural, e porque as ideias de Darwin assentavam em dois pilares fundamentais para Engels e Marx. A sua visão dava um papel predominante aos factores históricos e oferecia uma explicação material para a diversidade biológica, oposta às explicações criacionistas que reduziam a história ao momento de criação e invocavam forças divinas, ou sobrenaturais. Neste sentido, Darwin era um materialista histórico sendo o seu principal domínio de explicação a natureza.

Chamo a atenção que não me vou limitar às ideias de Darwin per se, mas sob a capa de Darwinismo, ou mais simplesmente Biologia Evolutiva, irei referir-me a este corpo de estudo, incluindo os muitos progressos assinaláveis realizados por outros biólogos desde Darwin. Assim, algumas das ideias que irei expor poderão não corresponder às ideias de Darwin nem à perspectiva consensual da actual comunidade científica, mas corresponderão sempre a uma perspectiva frutífera, encabeçada por biólogos iminentes. A área da Biologia Evolutiva, partindo da Evolução como um Facto, pauta-se por uma história de progressos e pela diversidade de ideias, sinal de uma ciência viva e frutífera.

Por exemplo, Darwin concebia uma dinâmica em que a natureza se limitava a oferecer desafios, aos quais as espécies davam resposta, adaptando-se através do mecanismo material da selecção natural. Hoje temos uma visão muito mais dinâmica e interactiva, dialéctica se quiserem, na qual os organismos se adaptam ao ambiente – seja ele factores abióticos, como a temperatura, a humidade, a textura do solo, etc., ou outros organismos – mas também o modificam, alterando desta forma as pressões selectivas que por sua vez actuam de novo sobre os organismos.

Em algumas espécies sociais, a dinâmica é bem complexa, envolvendo 3 modos de transmissão hereditária que interagem entre si. Por exemplo, nos seres humanos, uma geração transmite à geração seguinte uma selecção dos seus genes, através de um processo Mendeliano mediado por mecanismos evolutivos. Adicionalmente, transmite o ambiente por ela modificado; e, por fim, transmite também comportamentos e elementos culturais. Estes últimos dois processos de hereditariedade são independentes dos genes, mas constituem componentes do ambiente selectivo que influencia que genes serão transmitido entre gerações. Por outro lado, os genes, na medida em que influenciam a capacidade de alterar o ambiente, as preferências e comportamentos dos organismos, influencia a transmissão de ambiente e cultura entre gerações.

Deste modo, a espécie humana não se limita a adaptar-se ao meio; mas adapta o meio a si próprio. Este processo de construção activa do meio não é, porém, exclusivo da nossa espécie. Os castores, por exemplo, constroem diques e tocas que alteram profundamente o fluir de riachos; algumas espécies de formigas modificam o subsolo e constroem estruturas à superfície que fazem do seu complexo de corredores e câmaras uma sofisticada rede com sistema de ar condicionado. De modo menos activo, nas plantas, a forma, posicionamento e tamanho de uma folha modifica o microambiente que envolve a folha, tornando-a ideal para maximizar a captação de luz, controlar a temperatura e minimizar a perda de água por transpiração.

A biologia evolutiva é pois uma ciência no qual o materialismo histórico e o pensamento dialético, elementos centrais do Marxismo, podem figurar de forma proeminente. Digo podem pois nem toda a comunidade científica adopta um pensamento dialético, apesar da complexidade da realidade biológica, na qual múltiplos factores interactuam entre si, gritar por uma perspectiva dialética.

Por exemplo, no campo da genética e desenvolvimento, isto é nas transformações de um organismo ao longo da sua vida, muitos biólogos encaram os genes como omnipotentes, como tendo efeito directo no organismo. Esta postura reducionista e determinista tem  também expressão na busca do gene responsável por um qualquer aspecto do organismo, frequentemente de uma doença. Este programa de investigação presta-se a financiamentos de projectos e a títulos de artigos de jornal – que deste modo propagam uma visão ideológica específica sobre o modo de actuação dos genes. mas que corresponde a uma visão simplista do real modo de actuação dos genes. Na maioria dos aspectos do organismo (o seu fenótipo) estão envolvidos vários genes, que interagem entre si e interagem com factores ambientais no processo de desenvolvimento. A expressão de genes depende em parte do ambiente (celular e do organismo), e os ambientes são escolhidos em parte devido à composição genética de um indivíduo. Em ambos os processos de transformação histórico, evolução e desenvolvimento, há profundas interacções entre factores intrínsecos e extrínsecos que tornam a identificação de factores causais únicos difícil, se não mesmo inapropriada. Esta perspectiva dialética, mais complexa, mas mais perto da realidade, tem travado um debate ideológico com a perspectiva reducionista e determinista. A visão dialética do desenvolvimento e modo de actuação dos genes encontra-se muito bem tratada nas obras de biólogos marxistas, como Richard Lewontin ou Richard Levins.

Um segundo exemplo da aplicação da dialéctica na biologia evolutiva: Darwin sublinhou que a evolução biológica era um processo gradual, quantitativo, por analogia com os processos graduais e uniformes de transformação geológica propostos por Lyell, e em contraste com as ideias criacionistas e catastrofistas. O pensamento dialético sugere que mudanças quantitativas podem dar origem a mudanças qualitativas. Tal ideia veio a ser proposta por alguns autores, ao longo do século XX, no seio da biologia evolutiva, incluindo por Stephan Jay Gould, por sinal um marxista, mas a ser recusada pela generalidade da comunidade científica. A resistência devia-se ao facto de alterações qualitativas terem de surgir com forma integrada e funcional, de modo súbito, caso contrário seriam eliminadas por selecção natural. Mais recentemente, fruto do melhor entendimento do papel dos genes no desenvolvimento, esta ideia veio a ganhar corpo e fundamentação material. Isto porque ao longo do desenvolvimento existem genes reguladores, responsáveis pela activação e inibição de redes de outros genes. Assim, uma alteração quantitativa num gene regulador, por exemplo alterando onde este é expresso, pode conduzir à expressão de uma rede integrada de genes mais a jusante e, logo, ao surgimento de uma estrutura complexa e integrada noutro local do organismo. A título de exemplo, as moscas têm apenas um par de asas, no segundo segmento torácico. No terceiro segmento torácico, têm uma estrutura vestigial, os alteres. A evolução de alteres para um segundo par de asas, como existe noutros grupos de insectos, poderia parecer um processo que não poderia ocorrer repentinamente, pois envolve alteração no desenvolvimento do tecido das asas, nos músculos que coordenam o seu movimento, nos nervos que controlam os músculos, etc. Contudo, a modificação de apenas um gene regulador, implicado na expressão de asas no segundo segmento torácico, exprimindo este gene também no terceiro segmento torácico leva ao surgimento de um novo par de asas neste segmento, no qual há integração dos vários tipos de tecido.

Voltando à figura de Darwin. No seu processo de descoberta, em particular da ideia de selecção natural, a leitura de uma obra do Reverendo Thomas Malthus teve importância significativa – como aliás mais tarde para outro naturalista, Alfred Russel Wallace, que independentemente inferiu a ideia de selecção natural. O trabalho de Malthus, «Um ensaio sobre o Princípio da População», sugere que a população humana cresce a um ritmo exponencial, maior que o crescimento aritemético da produção alimentar. Malthus fez uso desta discrepância para defender, no que era fundamentalmente um panfleto político, que o Estado devia implementar políticas que limitassem o crescimento demográfico, incluindo deixar de prestar apoio social aos mais pobres, que na sua concepção estariam inevitavelmente destinados a morrer. A assistência aos mais necessitados apenas agravaria a competição pelos recursos limitados.

Darwin não era um Malthusiano social, mas a ideia de competição por recursos limitados, em que apenas alguns indivíduos poderiam sobreviver e reproduzir-se, constituiu a inspiração para a ideia de selecção natural. Herbert Spencer veio a descrever este processo como “sobrevivência dos mais aptos” e a aplicação desta noção às sociedades humanas veio a constituir o campo apelidado de Darwinismo Social, embora Darwin se tivesse demarcado desta corrente. Darwin aliás escreveu relativamente pouco sobre a espécie humana, questões sociais ou culturais, apesar de ter algumas posições políticas progressistas, nomeadamente, antiescravagismo e defensa de que todas as populações humanas pertenciam à mesma espécie.

O Darwinismo Social influenciou, e influencia, a argumentação de políticos e empresários que se apropriaram da ideia da “sobrevivência dos mais aptos” ou mesmo “sobrevivência dos mais fortes” para justificar o individualismo, a competição desenfreada e o capitalismo laissez-faire. Dois exemplos de afirmações de grandes capitalistas. Andrew Carnegie: “a competição pode ser por vezes dura para o individuo, mas é justificada porque é melhor para a raça, e porque garante a sobrevivência dos mais aptos em cada domínio.” John D. Rockefeller Jr. “O crescimento das grandes empresas é meramente a sobrevivência dos mais aptos … A Rosa apenas pode ser produzida no seu pleno esplendor e fragrância, que nos dá tanto prazer, se sacrificarmos os jovens botões de flor que crescem à sua volta. Isto não é um tendência malévola dos negócios. É meramente o trabalhar da lei da natureza e da lei de Deus.”

“No mercado como na natureza”, diriam, invocando uma  interpretação distorcida dos processos naturais, já que a evolução não se resume à ideia redutora da “sobrevivência dos mais aptos”. Darwin integrou esta expressão na 6a e última edição em vida de «A Origem das Espécies», mas ela é porém uma descrição parcelar do processo de selecção natural, que envolve não só a diferença entre a capacidade de sobrevivência dos indivíduos, mas também a reprodução diferencial. Naturalmente que só os indivíduos que sobrevivem se podem reproduzir, mas é a taxa de reprodução que dita a contribuição de um indivíduo para a geração seguinte.

Mas mesmo que a expressão fosse correcta, ao invocá-la para a actividade social humana, comete-se uma falácia naturalista, de que o que é natural é bom, que a ocorrência de selecção natural na natureza justifica a sua aplicação consciente na actividade económica, como se a nossa espécie não fosse capaz de praticar uma ética que nos liberte, no campo económico, da nossa natureza mais animal.

O Darwinismo Social veio ainda a dar aso ao Eugenismo, uma ciência aplicada que tem como programa o melhoramento da espécie. No início do século XX, não era uma ciência periférica. Existiam sociedades e congressos que contaram com a presença de iminentes cientistas e figuras proeminentes, incluindo um filho de Darwin e Winston Churchill. Tão pouco foi uma ciência meramente académica, mas deu aso a programas de esterilização no Canadá e na Suécia, entre outros, e ao programa de extermínio Nazi. Mas note-se que o erro destes programas não reside na base científica, na capacidade de transformar uma população da nossa espécie. Tal é possível, num certo nível. O ser humano tem conduzido processos análogos com espécies domesticadas. A questão é se é desejável. É uma questão ética: podemos justificar a esterilização e morte de uns indivíduos para melhorar a espécie? Donde imana uma segunda pergunta: o que significa melhorar a espécie? Nos processos de selecção artificial de espécies domesticadas a resposta é, por exemplo, uma vaca que produza mais e melhor leite ou carne. O melhor surge em função do interesse humano, não provém de nenhuma vantagem natural para a vaca. No caso da eugenia, o melhor corresponde uma raça ou característica superior, mais uma vez uma superioridade que não advém de qualquer base biológica, mas de uma escolha de um grupo de humanos, com base em fundamentos meramente ideológicos. Embora procurassem argumentar uma superioridade biológica do colonial face ao indígena, do ariano face ao judeu ou roma, essa suposta superioridade tem por detrás uma perspectiva cultural enviesada, racista, e não uma base biológica.

Permitam-me agora mudar para uma outra questão: a perspectiva sobre a natureza humana em Marx e como convém que esta seja modificada e melhorada em função dos progressos no estudo da nossa espécie e dos nossos parentes mais próximos. A compreensão do ser humano enquanto animal, enquanto membro da árvore da vida, com instintos e impulsos naturais, com características comportamentais universais e logo dificilmente sujeitas a alteração, é de grande relevância para a nossa reflexão sobre como podemos organizar uma sociedade. Pois, como poderemos apontar como uma sociedade deve ser organizada sem um conhecimento de como são os seres humanos. Nós não somos nem autómatos cujo comportamento é unicamente ditado por factores intrínsecos, nem nascemos como livros em branco, nos quais só o social escreve suas frases. Somos fruto de uma interacção entre factores intrínsecos e extrínsecos, uma mistura de natureza e nutrição (ou nature and nuture).

A séptima Tese Sobre Feurbach, de Marx, sugere porém que «... a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais.» Daqui decorre que não há uma natureza humana fixa, que se formos capazes de mudar o “conjunto das relações sociais”, podemos mudar a natureza humana, construir um “homem novo”.

Há porém aspectos universais das sociedades humanas, do comportamento humano? O estudo de populações humanas e das espécies mais próximas da nossa, em particular os grandes símios, como o chimpanzé e o gorila, sugerem que sim. Por exemplo, apesar de grande diversidade na forma como se manifesta, as sociedades humanas tendem a exibir alguma forma de liderança, individual ou colectiva. Nos grandes símios, observamos também hierarquias sociais. Significa isto que uma sociedade sem classes é inviável? Não, o que isto ilustra é uma tendência para uma organização com hierarquia. Nada implica sobre como a liderança é determinada, qual a sua duração, qual a extensão do seu poder, e sobretudo não implica que a liderança possa explorar os liderados. Entre chimpanzés, a posição do macho alfa está permanentemente sobre escrutínio. Se ele for incapaz de manter o respeito da restante comunidade, pela justeza das suas posições e pela capacidade de manter a harmonia social, a sua posição ficará em risco. Mas significa isto então que sociedades absolutamente igualitárias são impossíveis? Também não. Estas observações apenas nos informam sobre tendências naturais. Não cometamos também a falácia naturalista assumindo que a sociedade se tem de conformar com essas tendências. Mas não deixa de ser útil conhecer estas tendências intrínsecas, sobretudo optando-se por uma sociedade que as contraria. Não tendo nós porque sujeitar em absoluto a nossa sociedade em função dessas tendências, há que ter presente o conflito, de forma a mais eficazmente lidar com as suas consequências.

Um segundo exemplo de tendências comportamentais: temos tendência a identificar-nos com os indivíduos do nosso círculo social e, inversamente, encarar indivíduos diferentes com estranheza, incompreensão, desconfiança e no limite violência. O outro pode ser diferente por falar outra língua, ter outro tipo de vestes, ter outra religião, outra tez de pele, etc. Novamente, tal não significa que os fenómenos de xenofobia e racismo sejam inevitáveis, apenas que são previsíveis, sobretudo entre comunidades muito homogéneas. Pessoas que nasçam num ambiente diverso, multicultural, onde não exista demarcação social ou económica entre os diversos grupos, não irá encarar indivíduos diferentes de si mesmo e sua família como outros. Mas é importante saber que esta tendência está presente, e que pode ser exacerbada. Temos os casos de siitas e sunitas no Iraque, ou hutus e tutsis no Ruanda. Grupos que coabitaram décadas de forma harmoniosa, havendo casais de membros de ambos grupos, mas cuja rivalidade foi incentivada extrinsecamente, tomando partido desta tendência humana para categorizar, rotular o outro, sentir receio, e mesmo exprimir violência contra o outro.

Um último exemplo, muito querido dos ideólogos do neo-liberalismo, a tendência para a competição e individualismo. Sem dúvida que na nossa espécie indivíduos exibem tendências competitivas. Mas exibem igualmente a capacidade de cooperar. Ambas tendências coexistem, mas a maior expressão de uma ou outra tendência varia consoante a sociedade. A teoria de jogos oferece-nos um modelo que prevê o predomínio de uma ou outra tendência consoante o custo de ser individualista versus cooperar: o Dilema do Prisioneiro. (Este jogo tem várias versões. Apresenta-se uma versão simplificada.) Dois presos são interrogados separadamente, e a cada um é dada a possibilidade de acusar o outro e sair livre, sendo o segundo preso condenado. O preso pode optar por não acusar, mas arrisca-se a passar tempo na prisão se o segundo preso o acusar a ele. Se ambos acusarem o outro, ambos passam um tempo mais reduzido na prisão. Se nenhum acusar, ambos são libertados. Usando este jogo como analogia das relações humanas em sociedade, conclui-se que se apenas tivermos em conta o nosso interesse próprio, temos vantagem em confessar. Mas em sociedade as escolhas dos outros importam. A melhor solução global é ambos os presos não acusarem. Mas há incerteza sobre a decisão do outro.

A estratégia óptima entre dois indivíduos que jogam o dilema repetidamente, ou se duas pessoas interagem frequentemente em sociedade, é cooperar, até ser traído pelo outro, e nesse caso retaliar (Tit-for-Tat). Isto é, pode existir cooperação numa sociedade quando as pessoas interagem frequentemente, mas tal é mais raro numa sociedade atomizada, de indivíduos alienados. Mas mesmo numa sociedade coesa, haverá sempre a oportunidade de um indivíduo poder lucrar a curto prazo rompendo com a estratégia de cooperação. Melhorar o nível de educação, eliminar a pobreza, e alterar o ambiente social pode alterar a intensidade de bufos ou batoteiros do contrato de cooperação, mas não eliminá-los. Só alterando os custos de romper com a cooperação, se pode eliminar os batoteiros, e isso implica retaliação. Uma sociedade que deseje eliminar o individualismo terá que compreender esta dinâmica e evitar a todo o custo as condições que produzem os alienados da rede social.

Para terminar, uma última palavra sobre a natureza do trabalho. No “Capital”, Livro Primeiro, Tomo I, Quinto Capítulo (segundo numeração da Edições Avante!), Marx escreve:

“... o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho.”

Para Marx, portanto, o que distingue o trabalho humano é o facto da ideia preceder a execução. Porém, dado o nosso progresso na observação e estudo de outros animais podemos afirmar que estes não só usam instrumentos que criam para determinado fim, mas são capazes de antecipar na sua mente os vários passos necessários para completar uma tarefa, e agir em cooperação para a finalizar. Por exemplo, o primatólogo Frans de Waal estudou durante vários anos os chimpanzés do Jardim Zoológico Arnhem, na Holanda, onde reside uma colónia em condições semi-naturais. A maioria das árvores estão protegidas por redes electrificadas, para impedir que a desfoliação completa pelos chimpanzés. Mas existem algumas árvores desprotegidas, algumas das quais são árvores mortas, nas quais é fácil partir ramos. Estes ramos são por vezes usados para ganhar acesso às árvores protegidas. Tal implica partir de uma árvore seca um ramo que tenha um tamanho apropriado, idealmente um ramo que termine num ramificação, para assegurar melhor apoio na árvore. O ramo é levado até a árvore ramificada. Um dos chimpanzés permanece no solo, segurando o ramo, enquanto um segundo chimpanzé trepa o ramo, evitando a rede electrificada, e colhendo folhas, que partilha com o seu parceiro. Este é apenas um exemplo entre outros animais, que não o homem, em que o planeamento mental precede a execução física – a característica que Marx aponta como exclusivo do homem, que distingue o trabalho humano da actividade transformativa de outros animais. Naturalmente, o homem leva o planeamento mental a níveis de maior complexidade do que outros animais, em particular outros grandes primatas. Mas conclui-se que esta não é uma capacidade única ao ser humano.

Haverá então algo que distinga o trabalho do ser humano das actividades de outros animais? Talvez o mais distintivo tenha surgido quando o trabalho humano passou a produzir valor sem valor de uso para o trabalhador, mas exclusivamente valor com valor de uso para outrém, tendo para o trabalhor valor de troca. A diferenciação torna-se ainda mais demarcada quando o valor é a própria força de trabalho humana, suscetível de exploração e produção de mais valia. Neste sentido, o produto da actividade de uma vaca domesticada ou um escravo humano são semelhantes. São uma componente do capital fixo. Só quando o ser humano se vê em condição de oferecer a sua força de trabalho é que este se assume como componente do capital variável, capaz de produzir mais-valia.

Em conclusão, a biologia evolutiva tem tudo a ganhar com assumir como alicerces o materialismo histórico e o materialismo dialético. E o Marxismo tem tudo a ganhar com os avanços na biologia e psicologia de modo a refinar o seu entendimento da nossa espécie e a forma de construir uma sociedade mais justa, mais solidária e isenta de exploração.

6 comentários:

Anônimo disse...

E Lisenko?

Sérgio Ribeiro disse...

Gostei de te "ouver"!
Bom trabalho! Aprendi umas coisas... embora eu saiba muito pouco!

Um abraço

Rogério G.V. Pereira disse...

Só agora dei contigo. E te sigo.

Gostei da tua palestra... na sequência da atenção e divulgação de Marx em Maio, irei em breve fazer um post com link para aqui.

Abraço

Devir disse...

Que maravilha! Assim explicada, a relação entre marxismo e biologia parece óbvia...
( conhecemo-nos fortuitamente numa sessão de apoio à Palestina, na Casa do Alentejo...)

Sandro Matos disse...

Muito bom este texto! Estou muito feliz por ter me apropriado deste conhecimento produzido! PARABÉNS! Gostaria de saber se você conhece algumas bibliografias que demonstrem o trabalho como intencionalidade planejada em animais não humanos.

Paulo Ayres disse...

Caso não conheça, sugiro ao camarada que leia a obra Para Uma Ontologia do Ser Social, de Lukács. Há passagens sobre a relação entre sociedade e natureza e a fundamentação do porquê o trabalho ser a categoria fundante do mundo dos homens.