segunda-feira, julho 14, 2014

Um governo com política de esquerda é possível

Num artigo publicado no Expresso, Daniel Oliveira, a propósito do último episódio de fragmentação do Bloco de Esquerda, declara que: «A esquerda precisa de quem seja duro de roer mas saiba chegar a compromissos.» Neste caso não se trata do compromisso de direita, a que episodicamente o Presidente Cavaco pisca o olho, entre os partidos da troika nacional, CDS+PSD+PS, mas a um compromisso entre um destes partidos, o PS, e os partidos, movimentos e personalidades de esquerda. DO não é o única a critiar estes elementos pela falta de alianças à esquerda. Os argumentos são diversos: ortodoxia, inflexibilidade, intransigência, ou à falta de um programa de governabilidade, ou, por mim (a razão mais absurda) à falta de vontade de governar, preferindo estar "no contra".


A primeira realidade a compreender é que uma aliança que constitua uma verdadeira alternativa governativa de esquerda tem de ser composta por forças comprometidas com uma tal política, havendo alguns pontos fundamentais, de princípio e acção, comuns. Isto parece evidente, contudo muitas das discussões sobre governos de esquerda partem do princípio que tal governo envolve o PS e comete dois erros incontornáveis: (1) o principal responsável por falta de aproximação entre o PS e a sua esquerda não é são estas forças mas a política do próprio PS. Não há nada que indique que o PS (com Costa ou Seguro) pretenda seguir uma política de esquerda, assente na generalizada qualidade de vida dos portugueses, na dignificação do trabalho, no desenvolvimento de Portugal e defesa da soberania da nossa democracia, contra as imposições da UE e do capital internacional. O discurso do actual PS prossegue alinhado com o neoliberalismo. Tal é reflectido nas suas propostas na oposição e na sua acção no poder local e no Parlamento Europeu. O estilo dos líderes políticos do PS tão pouco revela qualquer indicação que a sua presença no governo não iria resultar no mesmo nível de nepotismo e submissão ao capital financeiro a que nos habituou no passado. Assim, não é de admirar que forças à esquerda não estejam disposta a declarar em abstracto um abertura para alianças com o PS. O PS não se tem afirmado verdadeiramente aberto a uma ruptura com a actual política. Apenas se mostrado ambição para governar. Porque haveria a esquerda de assinar um acordo em branco, com um PS que não tem dado razões para merecer confiança.

(2) Uma aliança entre o PS e as forças à esquerda não se deve à falta de interesse de criar uma alternativa por parte das forças da esquerda, mas sim do próprio PS. O PS (de Costa ou Seguro) não quer governar em coligação. Enquanto achar que tem a hipótese de governar sozinho, em maioria absoluta ou relativa, a sua estratégia eleitoral não irá contemplar qualquer abertura a coligações com forças políticas. Quanto muito irá quer absorver notáveis, bons para umas fotos. Mas nunca ninguém que efectivamente possa ter um impacto nas decisões programáticas. A sua noção de aliança corresponde não a uma simbiose, mas uma osmose. Vem, entra, trás os votos, tiramos uma foto, mas deixa as ideias à porta.

Outros elementos, estes raras vezes apontado pelos fazedores de opinião sobre a dificuldade de aliança à esquerda, como o anti-comunismo de várias estruturas à esquerda. Qualquer analista objectivo tem de admitir que uma efectiva frente de esquerda tem de incluir o PCP, pela sua importância, influência, experiência, propostas e ligação à sociedade portuguesa. Como se pode esperar que haja diálogo entre estruturas que praticamente se definem como anti-comunistas? Mas esta não é uma doença apenas dos anti-comunistas. Como se pode acreditar verdadeiramente na vontade e aptidão para unir a esquerda por parte de quem fragmenta mais a esquerda, abandonando organizações que já alegavam querer unir a esquerda? E que pensar ando algumas destas estruturas se criam meramente com ambições eleitorais, por vezes até centradas numa única personalidade política? Estas experiências são tentativas de convergência, de construção de partes de uma futura tendência numa aliança, ou servem apenas como promoção pessoal?

A boca de que os governos à esquerda, fora do "arco da governação" não querem governar, porque propõe programas "irrealistas", não merece resposta. Partem  de quem não tem imaginação e abertura intelectual, de quem não acompanha a diversidade da realidade nacional e internacional, da história, de quem está preso à dogmas sem sequer o reconhecer, de quem nem admite a esperança ou a necessidade de algo diferente.

Um último comentário, este dirigido não aos opinadores, mas aos eleitores, os que padecem da maleita do voto útil: eu só voto em quem pode governar, e só pode governar quem já governou, ou que pode atingir não sei quantos por cento. Esta maleita parece atingir mais os eleitores de esquerda que os de direita. Se os eleitores do CDS-PP pensassem em termos de voto útil, esse partido nunca teria participado em governos, em coligações com o PS ou o PSD. A diferença deve-se à maior abertura do CDS em formar coligações, capacidade que está ausente das forças à esquerda do PS, ou deve-se pelo contrário à maior abertura e facilidade das forças do bloco central em aceitarem condições ditadas pelo CDS, ou sejam procurarem convergência à direita? Um eleitor de esquerda já desencantado pelo PS, mas que julga que as forças à sua esquerda não poderão fazer parte do governo, e portanto vota "útil", está simplesmente à render-se ao paleio bipolarizante e de alternância do PS. Se a vontade do eleitor é uma alternativa de esquerda, um voto no PS é um voto perdido. Votar num PS para ter maioria ou no PSD é meramente uma escolha entre Pepsi e Coca-Cola. Uma efectiva alternativa incluindo o PS só poderá suceder quando este estiver em minoria, e quando simultaneamente houver um movimento social forte exigindo uma ruptura e um resultado eleitoral forte das forças à esquerda do PS.  Num quadro meramente eleitoralista, admito que uma viragem à esquerda mesmo neste cenário seja irrealista (e não é certamente a ideal; excluo aqui a possibilidade de uma maioria de esquerda sem o PS), mas esse irrealismo não se deve à improbabilidade de significativos resultados à esquerda do PS, mas antes à disposição do PS para romper com seu trajecto de direita, reconhecer a necessidade de ruptura, abandonar o tachos e disponibilizar-se para convergências. Queira o PS respeitar uma importante porção do eleitorado e propor verdadeiramente políticas alternativas, queira esse PS negociar com outras organizações numa base de respeito pela autonomia, então certamente encontrará forças à sua esquerda dispostas a contribuir para o desenvolvimento e soberania do país.

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