quinta-feira, julho 24, 2003

Nem tudo são rosas no reino de Bush

A popularidade de George W. Bush continua alta. Nenhum dos candidatos presidenciais do Partido Democrata reúne ainda convergência política suficiente para constituir uma ameaça eleitoral. E a máquina republicana de angariação de fundos já arrancou a todo o vapor1. Mas nem tudo são rosas no reino de Bush. A população dos EUA amanhece diariamente com a notícia de soldados mortos no Iraque. Não é de forma alguma claro quando as tropas dos EUA irão ser retiradas. O moral das famílias e dos militares no terreno vai-se erodindo. O Departamento de Defesa anunciou que a presença no Iraque está a custar 3,9 mil milhões de dólares por mês. A ocupação do Afeganistão custa 950 milhões de dólares mensalmente. O Orçamento de Estado, que não inclui estes custos de ocupação, vai criar um déficit recorde. A recessão persiste e a confiança pública na recuperação económica é baixa. E finalmente a Comunicação Social e os representantes no Congresso confrontam o presidente e a sua administração com perguntas sobre a legitimidade das razões invocadas para invadir o Iraque. Enquanto o primeiro-ministro britânico Tony Blair tem sido ferozmente questionado no Parlamento e na arena pública, Bush desfrutou até há pouco de uma protecção garantida pelo clima de medo e patriotismo excessivo que a sua administração tem fomentado. O desfazer das costuras fez-se em torno de dezasseis palavras pronunciadas pelo presidente durante o discurso do Estado da Nação em Fevereiro de 2003: «O governo britânico possui informação que Saddam Hussein procurou recentemente quantidade significativa de urânio em África.»
Acontece que a alegação de que o Iraque havia tentado comprar urânio na Nigéria é falsa. E, mais grave, existem indicações de que a administração Bush fez uso desta informação falsa para persuadir o Congresso e o povo dos EUA a apoiar a investida militar.
A administração reagiu tentando ignorar as acusações. Depois, alegou desconhecer, na altura do discurso do Estado da Nação, as indicações de que o documento era falso. Quando finalmente admitiu que não deveria ter feito uso dessa alegação, acusou os democratas de revisionismo e jogo político e apontou as culpas aos serviços de inteligência britânicos e finalmente ao director da CIA, George Tenet. Rede de mentirasMas as desculpas só enterraram mais a administração nas suas próprias palavras. A presente rede de mentiras e encobrimento é comparada ao escândalo Watergate e pergunta-se de novo: «Que sabia o presidente, e quando é que o soube?».
Em Fevereiro de 2002, o ex-embaixador Joseph C. Wilson[2], foi enviado secretamente à Nigéria, pela CIA e sob pressão do vice-presidente Dick Cheney, para investigar a compra de urânio pelo Iraque. Wilson não encontrou qualquer fundamento para as alegações e apresentou essa conclusão à CIA, ao Departamento de Estado, ao Conselho de Segurança Nacional e ao gabinete do vice-presidente. Wilson veio recentemente a público afirmar que a administração sabia que a alegação era falsa, e que o sabia bem antes da publicação do relatório britânico e do discurso do Estado da Nação.
George Tenet assumiu publicamente a responsabilidade por não ter removido do discurso a alegação sobre o urânio. Mas segundo o senador Dick Durbin, em sessão fechada perante o Comité de Inteligência do Congresso, Tenet identificou o nome de um adjunto da Casa Branca que pressionou a CIA a deixar a alegação no discurso. Tenet tinha conseguido retirar uma referência idêntica num discurso de Bush em Outubro de 2002. Mas as pressões políticas do Pentágono e do Departamento de Defesa sobrepuseram-se às reservas da Comunidade de Inteligência, e a referência emergiu de novo no Estado da Nação.
Abrem-se assim portas para a discussão pública de outras tantas falsidades e exageros públicos sobre a ameaça iraquiana, como a sua capacidade de lançar um ataque químico ou biológico em 45 minutos, a posse de tubos de alumínio para desenvolver armas nucleares, ou ligações ao grupo Al’Qaeda. Estamos longe de uma inversão de opinião sobre a validade da guerra, ou um questionamento aberto dos seus verdadeiros motivos. Mas a quebra de confiança na administração poderá criar dificuldades aos seus futuros planos de agressão. A 15 de Julho, John R. Bolton, subsecretário de Estado, preparava-se para testemunhar na subcomissão de Relações Internacionais da Casa de Representantes sobre a ameaça criada pelo desenvolvimento de armas biológicas, químicas e nucleares pela Síria. Segundo a Agência Knight Ridder, a CIA levantou fortes objecções à avaliação da administração. A exposição de Bolton foi subsequentemente adiada até Setembro. Talvez o momento de lançar uma nova campanha de guerra seja de novo após o Verão.

1 Bush não terá certamente oposição na corrida das primárias do Partido Republicano, mas a sua campanha prevê colher mais de 170 milhões de dólares.
2 Este diplomata de carreira havia sido o mais alto oficial dos EUA em Bagdad em 1990, merecendo louvores do então Presidente Bush.

Artigo publicado no Avante! Nº1547

quinta-feira, julho 10, 2003

Justiça à Americana

O início de Julho marca o primeiro aniversário do Tribunal Criminal Internacional (TCI)(1). Estabelecido pelo Estatuto de Roma em 1998, o documentado fundador foi assinado por cerca de 140 países e ratificado por 90. O TCI é o primeiro tribunal mundial permanente com jurisdição sobre genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
O tribunal foi formalmente inaugurado a 11 de Março deste ano, com a nomeação dos primeiros 18 juizes. Em Abril, o Argentino Luís Moreno Ocampo (2) foi eleito unanimemente como seu Procurador Geral. O TCI só poderá intervir quando os sistemas de justiça nacionais sejam incapazes ou relutantes em processar o caso. Parte do papel do procurador deverá consistir em pressionar os tribunais nacionais. Mas o teste crítico do TCI será trazer perante uma tribuna de justiça internacional líderes e governantes que se julgavam imunes. Moreno Campo passará os primeiros meses no seu novo cargo formando a equipa e investigando diversos potenciais processos. Dado os recursos limitados do TCI e a necessidade de se estabelecer como instituição internacional relevante, a escolha do primeiro país réu assume enorme importância. Entre possíveis candidatos encontram-se a República Democrática do Congo, a República da África Central e a Colômbia.Além do mais, o TCI enfrenta tremenda oposição por parte de um não signatário, os Estados Unidos da América.
Os EUA têm procurado colocar-se à margem deste braço de lei internacional por meio de acordos bilaterais garantindo imunidade a cidadãos dos EUA, nos quais os países signatários se comprometem a remeter de novo para os EUA qualquer cidadão seu procurado pelo TCI. Até à data, 44 países assinaram estes acordos (incluindo Timor Leste), 18 dos quais são também signatários dos Estatuto de Roma, mas apenas um número pequeno foi ratificado. Os EUA têm feito enorme pressão sobre os países que se recusam a assinar os acordos bilaterais, ameaçando-os com congelamento de assistência militar e financeira. Em resposta, em Junho, a União Europeia e a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adoptaram posições de apoio ao TCI e criticaram os acordos de imunidade bilaterais dos EUA. Ademais, chamaram a atenção dos estados membros para que tais acordos só enfraquecem o TCI, e apelaram aos membros que assinaram acordos bilaterais (caso de Israel e Roménia) para que não os ratifiquem, e aos países membros que ratificaram acordos (Bosnia-Herzegovina, Albânia, Azerbeijão e Geórgia) para que os apliquem de forma consistente com as suas obrigações perante a lei internacional.Os EUA têm também lançado ataques à lei «anti-atrocidade» belga, que permite o julgamento na Bélgica de crimes cometidos no estrangeiro. Esta lei permitiu o julgamento de quatro cidadãos do Ruanda por envolvimento no genocídio de 1994. Após críticas e preocupações de uso indiscriminado, a lei foi emendada em Abril, limitando a sua jurisdição a casos envolvendo cidadãos belgas e autorizando o governo belga a transferir casos para outros países. Ao abrigo desta emenda, um processo contra o general Tommy Franks, comandante das recentes operações no Iraque, foi remetido para os EUA. Tal provocou ameaças do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, que durante uma visita a Bruxelas em Junho exigiu a revogação da lei sob pena de a Bélgica perder o seu estatuto de hóspede do quartel-geral da NATO.
A administração Bush está mais preocupada, porém, em desarmar um outro braço jurídico capaz de julgar crimes internacionais contra direitos humanos: o sistema jurídico do próprio EUA. O Acto de Reivindicações de Injúrias Estrangeiras (ACTA)(3) fornece aos tribunais dos EUA jurisdição sobre «qualquer acção civil contra estrangeiros, por injúrias cometidas em violação da lei das nações ou tratados dos EUA».
Aprovada em 1789 em larga medida para lidar com a pirataria, a lei foi usada apenas duas vezes em quase duzentos anos. Em 1978, o Dr. Joel Filartiga, um paraguaio residindo em Nova Iorque, descobriu que o chefe de polícia que havia torturado e assassinado o seu filho no Paraguai estava também em Nova Iorque. Com assistência do grupo legal Centro de Direitos Constitucionais, Filartiga abriu um processo contra o paraguaio ao abrigo do ACTA. Apesar do caso envolver apenas estrangeiros e crimes cometidos no estrangeiro, os tribunais admitiram o caso e atribuíram uma compensação de dez milhões de dólares a Filartiga. Este nunca chegou a receber o dinheiro e o agente foi deportado para o Paraguai, mas a família Filartiga pôde trazer aos olhos do mundo crimes que nunca teriam sido investigados no seu país e criou-se um precedente no uso de ACTA para crimes semelhantes.
Desde então os tribunais têm reconhecido que violações de direitos humanos condenadas por tratados internacionais podem ser processados sob o ACTA contra indivíduos estrangeiros, desde que estes estejam presentes no território dos EUA e não sejam protegidos por imunidade diplomática. Em 1991, o Acto de Protecção de Vítimas de Torutura (4) aprovado pelo Congresso corroborou estes pareceres dos tribunais e estendeu a cidadãos dos EUA o direito de trazer à justiça indivíduos possuindo autoridade numa nação estrangeira acusados de tortura e crimes extrajudiciais.Em 1997, Neris Gonzalez emigrou de El Salvador para os EUA onde recebeu asilo. Para seu choque veio a descobrir que, gozando uma reforma luxuosa na Florida, se encontravam os generais salvadorenhos José Guillermo Garcia e Vides Casanova. Estes haviam ocupado respectivamente os postos de Ministro da Defesa e Director-Geral da Guarda Nacional de El Salavador em 1979, quando Gonzalez foi sequestrada pela Guarda Nacional, retida por duas semanas, violada e torturada com choques eléctricos e queimaduras de cigarros. Neris Gonzalez estava então grávida de oito meses. O seu filho nasceu com graves lesões e faleceu após dois meses. Em Julho do ano passado, o Tribunal Distrital da Florida conclui que ambos os generais eram responsáveis por tortura e outras atrocidades cometidas pelas tropas savadorenhas contra Gonzalez e a sua família, e condenou-os a pagarem mais de 50 mil dólares em compensações. Outros casos foram abertos contra o ditador filipino Ferdinando Marcos, o general indonésio Johny Lumintag (por coordenar ataques contra o povo timorense), o ex-primeiro ministro chinês Li Peng e o ex-presidente do Zimbawe, Roberto Mugabe.
Em Junho, o Tribunal de Apelação para o Nono Círculo decretou que o ACTA inclui a possibilidade de os próprios EUA serem processados por indivíduos estrangeiros. A decisão veio na sequência da compensação exigida por um médico mexicano sequestrado no México e ilegalmente extraditado, a pedido de agentes federais dos EUA. Esta decisão reforça o caso aberto em nome de um grupo de prisioneiros capturados no Afeganistão e detidos na Baía de Guantanamo contra os EUA.Um novo capítulo na aplicação do ACTA está em desenvolvimento: a sua extensão de casos contra indivíduos para julgamento de crimes cometidos por corporações internacionais. Um dos processos acusa a ExxonMobil de providenciar equipamento e apoio logístico às forças militares indonésias responsáveis por assassinato e tortura de civis na região de Aceh. Casos semelhantes foram abertos contra a engarrafadora colombiana Coca-Cola Bebidas e Panamco por cumplicidade em crimes cometidos por forças para-militares contra dirigentes sindicais, incluindo a morte de Isidro Gil nas instalações da fábrica em Carepa; e contra a Chevron-Texaco por cumplicidade com forças militares nigerianas na repressão de protestos conduzidos em 1998 numa plataforma petrolífera no Delta da Nigéria.
Nenhum caso contra uma corporação foi até agora definitivamente concluído. O caso mais avançado é o processo contra a companhia Unocal, que contratou forças militares birmanesas para «garantir a segurança» de um projecto multimilionário iniciado em 1990 de construção de um oleoduto na região de Teasserim. As forças militares têm sido responsáveis pela destruição de aldeias e migrações forçadas, por usar mão-de-obra forçada no abate de floresta para o oleoduto, estradas e instalações militares, e por aprisionamento, tortura e execução de centenas de aldeãos. A Unocal alega que desconhecia os crimes cometidos em seu proveito e não aceita responsabilidade por «excessos» cometidos pelo governo da Birmânia (auto-designada Myanmar pela ditadura). Mas o caso da procuração, iniciada por 15 aldeãos exilados nos EUA, possui provas de que a direcção da Unocal ignorou inúmeros avisos, inclusivamente conclusões do Departamento de Estado do EUA e da ONU, de que as forças militares eram flagrantes violadoras de direitos humanos. Temendo a força do processo, a Unocal apelou à intervenção da administração Bush. Em Maio, o Procurador Geral, John Ashcroft, entregou ao Tribunal de Apelação para o Nono Círculo, que considera este caso, um parecer contra o uso do ACTA por interferir com a política externa dos EUA e ameaçar a eficácia da Guerra contra o Terrorismo. Não haja dúvidas de que lado se colocam o poder financeiro e os seus lacaios quando há que escolher entre lucros e justiça, entre expansão imperial e defesa de direitos humanos.

1 ( http://www.transparency.org )
3 Alien Tort Claims Act (ACTA).
4 Torture Victim Protection Act (TVPA).

Artigo publicado no Avante! Nº1545