quinta-feira, abril 21, 2005

Guerra das estrelas

No próximo mês de Maio decorrerá uma nova ronda de conversações em torno do Tratado de Não-Proliferação (TNP). Este será certamente um dos momentos mais críticos à viabilidade do TNP desde a sua implementação em 1970. Não pelo abandono do TNP pela Correia do Norte, em Janeiro de 2003, em resposta à política agressiva dos EUA. Não pelas alegações de programa nuclear militar do Irão: a Agência Internacional de Energia Atómica afirma não existirem evidências para tal. Nem sequer por um dos países mais beligerantes do Médio Oriente (Israel) possuir armas nucleares não declaradas, ou os rivais Paquistão e Índia terem efectuado testes recentemente. (Nenhum destes 3 países é signatário do TNP).

«Os EUA são o maior culpado da erosão do TNP. Enquanto reclama proteger o mundo das ameaças de proliferação no Iraque, Líbia, Irão e Correia do Norte, os seus líderes não só abandonaram os constrangimentos impostos pelos tratados, como implementam planos para testar e desenvolver novas armas, (…) abandonam passadas promessas e ameaçam usar armas nucleares contra estados não-nucleares [i.e., não como retaliação a um ataque nuclear, mas como ataque nuclear primário].»1 As palavras são do ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, que peca por não esclarecer que entre os «esforços» de desarmamento doutros países e o desenvolvimento do seu próprio arsenal só existe contradição se assumirmos que esses esforços são legítimos. Na verdade, não são mais que uma componente na sua estratégia de mudança de regimes que não se submetem aos seus avanços imperiais. Assim foi no Iraque, assim é com o Irão e Correia do Norte. Mas estes países aprenderam a lição do Iraque.

O Iraque, segundo todas as evidências, foi desarmado com sucesso, após a primeira Guerra do Golfo. Mas para os EUA não bastou. A não-proliferação não era o seu objectivo final, mas antes a instalação de um regime mais favorável aos seus interesses. A estratégia dos EUA consiste em se aproveitar da comunidade internacional para enfraquecer as defesas de uma nação para depois lançar ataques militares, usando falsa diplomacia como cortina de fumo. Na leitura de nações como a Correia do Norte possuir armas nucleares é a forma viável de dissuadir uma eventual invasão: uma détente à moda antiga. Só a cooperação e a diplomacia honesta (abandonando as pretensões de mudança de regime, e assumir os objectivos de não-proliferação que se exige do parceiro) pode garantir a resolução da actual escalada nuclear.

Domínio do Espaço

Não se trata aqui de temer o uso de armas nucleares por parte de terroristas. Se assim fosse, como entender a imunidade dada a Abdul Qadeer Khan, o pai do programa nuclear do Paquistão, que lidera uma rede multinacional de operações que se pensa ser responsável pela venda de material e inteligência à Líbia e Correia do Norte? Embora em prisão doméstica no Paquistão, a sua rede continua operacional e o governo do Paquistão recusa-se a permitir que Khan seja interrogado.

E o desenvolvimento de novas formas armas nucleares e do «sistema nacional de defesa anti-balístico» só fazem sentido no enquadramento de confrontos entre nações, não como defesa contra uma rede terrorista, móvel e descentralizada; só no contexto de atingir uma dominância a todo espectro, «a capacidade de controlar qualquer situação ou derrotar qualquer adversário»2. A administração Bush procura insistentemente desenvolver novas armas nucleares, incluindo o «Robusto Penetrador Terrestre Nuclear»3, e este ano o ‘Programa Falcão’ vai testar o lançamento do Veículo Aéreo Comum4, uma nave suborbital, sem piloto, capaz de despejar 500 quilos de munições em qualquer lugar do mundo em duas horas.
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A frente mais recente de operações é o Espaço. Em Março, o Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, assinou um memorando de Estratégia de Defesa Nacional enunciando como objectivo «assegurar o acesso e uso do Espaço e negar a sua exploração hostil por adversários»5. O objectivo é ganhar capacidade de atingir alvos terrestres a partir do Espaço e destruir ou desactivar satélites inimigos. O tratado de 1967 que regula o Espaço, assinado pelos EUA e 90 outros países, estabelece que o Espaço deve ser usado apenas para fins pacíficos. O tratado é omisso quanto ao uso de armas «convencionais» no Espaço, o que tem motivado os governos da Rússia e China a promoverem novas rondas de negociações. Se não, em breve, filmes como a «Guerra das Estrelas» deixarão de ser ficção.
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1 28 de Março, Washington Post
2 Full Spectrum Dominance, ver a National Military Strategy (2004) do Conselho de Estado dos EUA (o Joint Chiefs of Staff)
3 Robust Nuclear Earth Penetrator
4 Common Aero Vehicle (CAV)
5 29 de Março, Washington Post

quarta-feira, abril 13, 2005

A diplomacia dos EUA

Após a nomeação de Freitas do Amaral como ministro dos Negócios Estrangeiros, muitos dos analistas mostraram-se preocupados com os seus comentários contra a Guerra no Iraque e a política unilateral de Bush. Teme-se as repercussões de não se assumir uma política externa subserviente aos desígnios do Império, ainda que muitos outros países da UE tenham feito declarações semelhantes. Mas acalmem-se, que Freitas já frisou que «a situação é completamente diferente desde a visita do presidente Bush à Europa”(1). De facto, reina esta fantasia que o segundo mandato de Bush será diferente, mais dialogante e multilateral. Afinal, deram tanto (!) apoio à Ásia após o tsunami; estão a estudar a proposta europeia para negociação com o Irão; fazem uso de pressões diplomáticas, juntamente com a França, frente à Síria. Ainda não invadiram ninguém.
Basta porém ler algo sobre John Bolton, nomeado por Bush para assumir a embaixada dos EUA na ONU (ainda não confirmado pelo Congresso dos EUA) para nos certificarmos que Bush não pretende integrar a comunidade de nações, mas manipulá-la e subjugá-la. Bolton representa uma facção significativa dos EUA que vê na ONU um empecilho e um sorvedor de dinheiro, e é responsável por inúmeros comentários hostis às Nações Unidas: «Quando os EUA lideram, a ONU segue-nos. Quando servir aos nossos interesses, seguiremos a ONU. Quando não servir, não o faremos», ou quando afirmou que o Conselho de Segurança da ONU só precisa de um membro permanente, os EUA, “porque estes são o verdadeiro reflexo da distribuição de poder no mundo”.(2) Bolton apresenta como credenciais diplomáticas opor-se ao Tribunal Criminal Internacional e a negociações com a Correia do Norte, e exigir sanções económicas ao Irão.
Aliás, a administração Bush deu continuidade à sua política de excepção judicial quando no início de Março, numa carta de dois parágrafos de Condoleezza Rice, a secretária de Estado, a Kofi Annan, retirou os EUA de um protocolo opcional da Convenção de Viena de 1969, que estipula que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o órgão judicial da ONU em Haia, tem a última palavra em casos onde indivíduos presos no estrangeiro alegam ter-lhes sido negado o acesso aos seus representantes consulares. Esta decisão vem no seguimento do caso de Ernesto Medellin, cidadão mexicano condenado à morte no Texas, que pediu recurso ao TIJ. A administração Bush determinou que Medillin e 50 outros mexicanos condenados à morte seriam os últimos a beneficiar deste protocolo. É de assinalar que a meio de Março o Senado mexicano, numa votação de 79 votos a favor e dois contra, aboliu a pena de morte no México.
E que dizer da nomeação de Paul Wolfowitz, outro falcão mor, um dos arquitectos da invasão do Iraque, para o mandado de cinco anos na presidência do Banco Mundial (um cargo que historicamente é apontado pelos EUA)? Com tal nomeação é certo que os interesses financeiro e do capital dos EUA, e as suas ambições imperiais, virão bem à frente da função constitucional do BM em promover o desenvolvimento nos países mais carenciados. Joseph Stiglitz, estado-unidense, prémio Nobel de Economia e ex-presidente do Banco Mundial, numa entrevista recente ao Channel 4(3), alertou que sob a liderança de Wolfowitz «o BM poderá ser de novo uma instituição odiada. Poderá levar a protestos e violência nos países em desenvolvimento». Stiglitz descreve a nomeação de Wolfowitz como «ou um acto de provocação ou um acto tão insensível por forma a ser lido como provocação». Acrescentou que o BM se tornará «um instrumento explícito da política externa dos EUA. Presumivelmente irá liderar a reconstrução do Iraque, por exemplo, o que prejudicará o seu papel enquanto órgão multilateral». E sobre as capacidades de Wolfowitz afirmou que «não tem treino ou experiência no desenvolvimento económico ou mercados financeiros». Estas afirmações contrastam com o editorial de José Manuel Fernandes(4) que parece uma caixa de ressonância da máquina de propaganda norte-americana.
Importa também entender que os ditos «esforços diplomáticos» dos EUA em prol da democracia e segurança não são mais do que um pretexto para a mudança de regime em países que se organizam na sua resistência ao imperialismo. Como haveria a Correia do Norte de negociar com os EUA enquanto estes mantêm como objectivo estratégico o derrube do seu regime? Porque haveria de aceitar o Irão suspender o seu programa energético nuclear e eventualmente um programa de armamento nuclear, quando os próprios EUA desenvolvem novas armas nucleares, proibidas pelo Tratado de Não-Proliferação?

(1) Público, 17 Mar 2005, P.14
(2) Sonni Efron, Los Angeles Times, 8 Mar, 2005,
(3) Telegraph/UK, 20 Março 2005. Durante a presidência de Stiglitz no BM, este recuperou alguma credibilidade no países em desenvolvimento, enquanto verdadeiro promotor de desenvolvimento, em contraste com o FMI. Veja-se o seu livro Globalization and its Discontents (2002) que, embora sempre num contexto capitalista, faz uma crítica do modelo neoliberal e dos programas de reajustamento estrutural e aponta algumas medidas de reforma do BM por forma a torná-lo um motor de desenvolvimento e solidariedade.
(4) Público, 21 Março 2005