quinta-feira, setembro 23, 2004

A questão sudanesa

Em Fevereiro de 2003, dois grupos rebeldes, o Exército/Movimento de Libertação Sudanês (E/MLS) e o Movimento Justiça e Igualdade (MJI), lançaram uma ofensiva militar ocupando áreas de Darfur, no Sudão ocidental. Exigiam o fim da marginalização económica de que se sentiam alvos por parte do governo de Cartum, uma partilha mais equitativa de poder no governo central e uma resposta aos problemas da seca e desertificação, que desde 1998 geravam conflitos entre os povos agrários e os pastoris semi-nómados.
O governo do Sudão, liderado por Omar al-Bashir, ripostou apoiando milícias (as janjaweed) que pilharam e destruíram aldeias, violaram mulheres e assassinaram adultos e crianças, sobretudo dos povos Fur, Masalit e Zaghawa, a base do E/MLS e MJI.
Estima-se que desde o início do conflito tenha havido mais de 40 mil mortos, mas o número de vítimas poderá alcançar os 300 mil se não se fizer chegar medicamentos, comida e água aos mais de 1,2 milhões de refugiados internos e cerca de duzentos mil refugiados no Chade. Segundo a ONU, Darfur sofre uma das mais graves crises humanitárias no mundo, levando alguns a usarem o termo ‘genocídio’[1].
Em paralelo, o Sudão tem estado a braços com um processo de negociação de cessar-fogo, iniciado em meados de 2002, com as forças rebeldes do Sul do país, o Exército/Movimento de Libertação do Povo Sudanês (E/MLPS). As conversações de Naivasha, Quénia, mediadas pelos EUA, Noruega e Grã-Bretanha, prometiam pôr fim a uma guerra civil de 21 anos entre o Norte e o Sul do país, e facilitar o desenvolvimento da exploração petrolífera no Sul.
A crise de Darfur constituiu um perigoso sinal de que as concessões dadas ao Sul estariam a animar movimentos populares, que poderiam ainda alastrar a outras regiões marginalizadas como o Nuba ou Bahr el-Ghazal. Darfur foi inicialmente ignorada pelo ocidente, mas a crise prosseguiu e os dois conflitos entrelaçaram-se. John Garang, líder da E/MLPS, declarou este Verão que «não haveria nenhum acordo que ignorasse Darfur».
Na mira do petróleo
O processo de paz faz parte do esforço do Sudão para estar nas graças dos EUA, que o inclui ainda na sua lista de estados que financiam terrorismo2. Após o 11 de Setembro, o Sudão mostrou-se disponível para colaborar na caça à Al-Qaeda em troca de uma abertura comercial e apoio financeiro dos EUA. A administração Bush, por seu lado, teve no Sudão o seu mais significativo (o único?) esforço diplomático num processo de paz. Uma ordem executiva, passada por Clinton em 1997, excluiu empresas dos EUA de lucrarem nos novos jazigos petrolíferos no Sudão. A guerra civil forçou as companhias ocidentais aí instaladas a suspenderem a actividade ou a venderem os seus interesses nos últimos dois anos, gerando uma enorme oportunidade. Embora nenhuma empresa dos EUA tenha investimentos no Sudão, a «Doutrina Africana» aponta para a «estabilização» dos exportadores africanos, incluindo a Nigéria, Angola, Guiné Equatorial e São Tomé. (Existem indícios que os EUA preparam a construção de uma base naval no Golfo da Guiné, possivelmente em São Tomé, onde já financiam um porto no mar alto.)
Até à data, a União Africana enviou para o Sudão 120 observadores, protegidos por 300 soldados, e anunciou o envio de mais 2000 soldados. Face à falta de melhorias, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a semana passada uma resolução contemplando um embargo à exportação de petróleo e importação de armas, caso o Sudão não controle a acção das janjaweed. A proposta teve a abstenção da China, membro permanente do Conselho (mais de metade das exportações do Sudão destinam-se à China, e a China lidera as importações para o Sudão.)
Independentemente dos interesses económicos chineses, o uso de sanções económicas não responderá às necessidades do povo de Darfur: o passado mostra-nos que a imposição de sanções atinge negativamente as populações, deixando as elites e líderes no governo ilesos.
Infelizmente, devemos ser cépticos quanto ao recurso a «intervenções humanitárias», que têm sido usadas para encobrir avanços geoestratégicos, desde o Kosovo ao Haiti.
Os grupos rebeldes E/MLS e MJI apoiam uma solução africana por parte da União Africana para a resolução dos conflitos. Quanto ao ocidente, o que seria desejável era que, em vez de enviar tropas, apoiasse financeiramente o Programa Alimentar Mundial da ONU, que tem apenas metade dos 194 milhões de dólares de que necessita para evitar os previstos 10 000 mortos mensais entre os refugiados. Uma eventual intervenção armada em mais um país muçulmano só servirá para transformar o Sudão noutro palco de luta imperial.

1 Como o Congresso dos EUA e o Secretário de Estado Colin Powell.
2 Recorde-se o ataque à fábrica farmacêutica de al-Shifa, em 1998, e a presença de Osama bin Laden no Sudão no início dos anos 90.
Artigo publicado no Avante nº1608

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