quarta-feira, outubro 04, 2006

EUA e barbárie

«Os EUA não transportaram ninguém, e não transportarão ninguém, para um país onde cremos será torturado.»
Condeleeza Rice, secretária de Estado dos EUA
«Não aceitamos tortura. Eu nunca ordenei tortura, eu nunca ordenarei tortura. Os valores no nosso país são tais que tortura não é parte da nossa alma.»
George W. Bush, presidente dos EUA.
A 26 de Setembro de 2002, Maher Arar, cidadão canadiano e natural da Síria, fazia escala no aeroporto Kennedy em Nova Iorque, ao regressar de férias com a família na Tunísia. Foi chamado de parte para ser questionado e só voltou a ver a família 374 dias depois. Durante as primeiras semanas, a família não sabia do seu paradeiro. Arar foi transportado para a Jordânia e depois para a Síria, onde foi repetidamente torturado.

Na semana passada, um inquérito oficial no Canadá concluiu que Arar era totalmente inocente, e que a decisão dos EUA de prender Arar foi baseada em informações falsas e sem fundamento providenciadas pelas autoridades do Canadá. O primeiro-ministro canadiano Stephen Harper admitiu a injustiça mas recusou-se a pedir desculpas a Arar. Não deixa de ser surpreendente que os EUA tenham optado por enviar Arar para a Síria, país que tem acusado de atentados aos direitos humanos e de financiar terrorismo, e sabendo que Arar seria aí torturado.

No final de 2003, o alemão Khaled El-Masri, durante as suas férias na Macedónia, é retirado de um autocarro de turismo, detido pelas autoridades locais durante 23 dias, e interrogado sobre a sua ligação a um centro cultural islâmico na Alemanha. Passado este período foi levado para o aeroporto, tendo sido informado que iria ser deportado para a Alemanha. Em vez disso, arrancaram-lhe a roupa do corpo, algemaram-no, cobriram-lhe a cabeça, bateram-lhe, deram-lhe um sedativo e transportaram-no para uma prisão em Cabul, Afeganistão. Aí um interrogador libanês disse-lhe: «Você está num país sem leis. Podemos prendê-lo durante 20 anos ou enterrá-lo, e ninguém saberá.» Em Março de 2004, iniciou uma greve de fome, juntamente com outros presos em protesto contra as condições prisionais. Em Maio é finalmente vedado e algemado, e liberto num local remota, perto da fronteira albanesa. Nunca foi formalmente acusado de qualquer crime.

Em Abril de 2002, o etíope Binyam Mohamed, residente em Inglaterra, preparava-se para regressar a casa no aeroporto de Carachi, no Paquistão. Foi entregue às autoridades estadunidenses, que lhe recusaram comunicação com um advogado. Perante a sua falta de cooperação, o FBI ameaçou deportá-lo: «Não podemos fazer o que queremos aqui. Os nosso amigos árabes saberão tratar de ti», recorda Mohamed. Em Julho é rendido para Marrocos num voo da CIA, isto é, transportado entre estados sem supervisão judicial. Aí foi acusado de pertencer à Al’Qaeda e torturado, incluindo repetidos cortes ao órgão sexual, até confessar várias falsidades. Em Janeiro de 2004, é transferido para a chamada Prisão Escura, em Cabul, onde os presos permanecem na escuridão 24 horas por dia. Aí foi interrogado diariamente. «Não sei que dizer», protestava. «Diz-nos o que queremos», respondiam o seus interrogadores.

Mostravam-lhe fotos e indicavam nomes e histórias, que Mohamed então confirmava. Em Maio, é transferido para a prisão de Bagram: quatro meses mais de interrogação. Em Setembro, vai por fim para Guantánamo, em Cuba, onde permanece ainda. Só em Janeiro de 2005 é que a sua família é notificado do seu paradeiro. Só em Novembro desse ano é que Mohamed é formalmente acusado pelos EUA de conspiração para cometer terrorismo.

Estes casos são apenas uma pequena amostra(1) das centenas de inocentes enrolados na teia da Policia Internacional dos EUA (PIDE, porque não), ao serviço de um «regime ditatorial global» (nas palavras de El-Masri). Estes casos ilustram também como prisões arbitrárias e tortura são sobretudo formas de subjugação e opressão, pois como forma de angariar inteligência utilizável são notoriamente imprestáveis. A promessa de apoio financeiro, militar e material pressiona os serviços de inteligência de meio mundo a produzirem resultados que justifiquem esse apoio, mesmo que a inteligência não seja fidedigna. Veja-se a revelação do presidente Pervez Musharraf, que a CIA pagou milhões de dólares ao Paquistão em troca de 350 alegados membros da Al’Qaeda.

O Congresso dos EUA prepara-se para aniquilar o princípio constitucional de habeas corpus. Este mandado judicial, que data da Magna Carta de 1215, obriga o governo a explicar publicamente as razões de detenção de um preso. Estamos perto da barbárie, onde um inocente pode ser preso, transladado pelo mundo fora, numa prova de tortura, sem que sejam dadas quaisquer satisfações a ninguém. E nesta rede de tortura, o Estado português é também cúmplice, como demonstra o recente relatório da Eurocontrol e o relatório à Comissão Europeia de Junho.

(1) - Sobre o caso de Khaled El-Masri e Binyam Mohamed aconselho o visionamento do documentário "Outlawed", produzido pela organização de direitos Humanos "Witness, e disponível em http://video.google.com

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