«Como homem te não deitarás, como se fosse mulher; abominação é ... porque toas estas abominações fizeram os homens desta terra ... e a terra foi contaminada" (Bíblia Sagrada". A prática legalizada desta abominação aos olhos de Deus levou à ruína e extinção de poderosas civilizações, especialmente a romana. Seria que ainda não aprendemos?»Guardei o pequeno texto pois trata-se de uma pérola ilustrativa de retórica mal construída de um liberalismo cristão com o qual não me havia ainda confrontado directamente em Portugal, mas que é muito frequente nos EUA, onde vivi vários anos.
Por onde começar?
1. o argumento nada tem que ver especificamente com o casamento per si, mas com a realização de actos homossexuais, e destes apenas os entre homens.
2. o douto crente podia ter citado a escritura específica para nossa edificação. Trata-se de Levítico 18:22: «Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é;». Já agora, caso algum leitor tenha dúvida, não gostando de mulheres, a bíblia também proíbe que um homem se deite com qualquer outro animal :«Nem te deitarás com um animal, para te contaminares com ele; nem a mulher se porá perante um animal, para ajuntar-se com ele; confusão é. [Levítico 18:23]» Suponho que o género do outro animal seja indiferente. Cuidado pois às pessoas que deixam os cães ou gatos dormir nas suas camas. Brinco, pois o verbo "deitar" é aqui usado no mesmo sentido de Adão ter "conhecido" Eva, isto é, tiveram relações sexuais. No que consiste ter relações sexuais é matéria legal sobre a qual o ex-presidente Bill Clinton desenvolveu pormenorizada análise. Deixemos essas considerações de parte, e assumamos que o velho testamento se referia não a sexo oral, nem à inserção de charutos nas partes intimas, mas sim ao acto de sodomia, ou sexo anal.
3. Sendo que o escritor da carta se refere meramente à "abominação do acto", e sua pratica legalizada, que em nada se alterou com a recente lei, suponho que a sua preocupação com a extinção da nossa civilização já vem de longa data. Em certas regiões dos EUA a sodomia é efectivamente proibida por lei, mesmo quando praticada na privacidade do lar, mas não creio que tal tenha sido o caso em Portugal. A única alteração recente na legislação desta "abominação" é a proposta de permitir que casais homossexuais se possam casar legalmente. Tendo em conta que aglguns estudos demonstram que a frequência de relações sexuais de indivíduos que contraem matrimónio, talvez esta lei até permita diminuir a frequência de "abominações".
4. É sempre notório que ao se levantar a questão da homossexualidade e do casamento, a discussão tende a referir-se quase exclusivamente à homossexualidade feminina. Terá o Velho Testamento alguma iluminação sobre essa vertente. Sabemos que a mulher não se pode "deitar" com um cavalo, ou um hamster. Mas e com uma outra mulher? Ou temos ainda a postura da Rainha Victoria de Inglaterra, que não se referia ao tema, porque simplesmente não o achava concebível. Certamente que as horas de filmes porno de sexo lésbico (muito dele dirigido a homens) vem demonstrar que o acto é possível. Há também casos de casais de mulheres felizes que nos demonstram que não se trata apenas de um acto carnal, mas que há sentimentos de amor e envolvimento emocional. Será também uma abominação, embora não tenhamos palavras sagradas para nos orientar?
5. Estas "abominações" foram aparentemente responsáveis pela ruína de civilizações poderosas, como o romana (!), e porque não da grega. E já agora do Império Britânico, pois certamente nos colégios internos ingleses deveria haver muita "abominação". Terá sido essa a razão da queda dos Egípcios, dos Incas, dos Maias. Ou, não sei, será que existem outros factores históricos (sociais, económicos, políticos, militares) responsáveis pelas suas quedas. Grandes conquistadores, como o Alexandre o Grande, não parecem ter padecido de fracassos militares devido à distracção com a "abominação". E que tal civilizações menos poderosas, mas mais de maior longevidade? Na Polinésia, faz parte do rito de iniciação sexual dos jovens adolescentes engolirem o sémen dos homens adultos, após uma "abominação", para depois serem capazes de produzir sémen por si próprios e fertilizarem as suas esposas. Esta prática dura há centenas de anos. E a civilização ocidental não lhes destruir a cultura, continuaram a praticar este rito durante mais outras centenas de anos.
6. Por fim, quem faz apelo à interpretação literal de citações do velho testamento, tem de estar preparado para responder a outras questões levantadas por outras passagens. Ao ler a carta, lembrei-me de um fragmento de um episódio da série televisiva chamada "West Wing" ("Os Homens do Presidente", em Portugal), que contava com o actor Martin Sheen na personagem de Joshiah Bartlett como Presidente dos EUA. Devo confessar que se trata de uma das minhas séries de televisão preferidas, já tendo visto as 7 temporadas umas 4 vezes. Tem um ritmo fantástico, um guião sublime, actores estupendos, e como um todo consiste num profunda lição sobre política, e em particular sobre o processo político nos EUA. Recomendo vivamente. Sobretudo para os que, por exemplo, acham que os políticos escrevem os seus próprios discursos, ou que não são influenciados por lobbies e pressões de membros do seu próprio partido. A série teve um atractivo adicional (embora tivesse valor em qualquer altura) por ter exposto um presidente liberal ficcional na Casa Branca durante os anos de George W. Bush. Dos muitos autocolantes políticos que me recordo ver nessa altura, um engraçado dizia que "O meu presidente é Josiah Bartelett". Serve isto também para contrariar quem pensa que os estadunidenses não são activistas políticos. Vi nos anos Bush, sobretudo depois do esfriar do Onze de Setembro, mas autocolantes e tomadas de posição pública aberta sobre políticos e política, do que vejo em Portugal. Muita dela através de autocolantes nos carros, mas trata-se do meio meio mais visível no planeamento sub-urbano dependente do automóvel. Vejam então o que Bartlett responde a uma evangelista que interpreta literalmente a Bíblia.
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