quarta-feira, janeiro 29, 2014

Praxistas

A recente tragédia dos estudantes da Lusófona no Meco tem chamado a atenção novamente para os excessos das praxes académicas (e roubado a atenção a outros assuntos talvez mais merecedores). Há que evitar porém que a resposta sejam medidas excessivas de condicionamento do comportamento. Já existem leis para proibir e condenar a violência ou mesmo o assédio. Mas não se pode, pela via legal, proibir  a maldade ou a estupidez. Normas proibindo genericamente uma actividade - a recepção de novos alunos - ou regulando detalhadamente suas componentes seriam um primeiro passo na limitação da liberdade.
O ultrajar e a violência na praxe não é particular ao ensino superior. Ocorre no desporto, nas forças armadas, no local de trabalho. Neste último contexto, por exemplo, existem leis específicas sobre o assédio sexual, e as empresas tem sessões de esclarecimento sobre este tipo de assédio, tomam medidas contra o infractor. Mas estes procedimentos não cobrem genericamente o assédio, que inclui o comentário maldoso, a ameaça mais ou menos subtil de despedimento ou outras formas de pressão e humilhação; nem há leis estipulando que se tem de convidar o colega para jantar. Para estas outras situações temos boas e más práticas, normas sociais.
Da mesma forma, os institutos de ensino superior (muito menos o governo) não devem proibir genericamente a praxe ou constranger pormenorizadamente o que esta pode ou não englobar. Mas pode e deve dar o exemplo e esclarecer. Pode organizar, juntamente com alunos, uma recepção com mesas de informação sobre a universidade, localização de salas e serviços, mostrar filmes sobre as praxes, ilustrando os excessos mas também o que a recepção do "caloiro" pode ter de positivo. Nestas recepções pode também esclarecer o novo aluno que este, no contexto da praxe, não precisa de se submeter a nada contra a sua vontade. Pode parecer óbvio, mas tal é obscurecido pela vontade de integração, desconhecimento do que é normal no novo ambiente. As escolas devem falar com as comissões de praxe, apelar ao bom senso, tornar claro que excessos serão investigados e trarão represálias académicas ou criminais se tal se justificar.
Deve favorecer-se uma recepção de novos alunos positiva. Mas tal não sucederá com leis e regulamentos. Que quiser ser maldoso sê-lo-á, durante ou fora o período de praxe, por muito que regras mandatem o contrário. E se cometer violência, ou dano por negligência ou maleficência, existem leis que o penalizarão, independentemente do contexto da praxe.

Um comentário:

Anônimo disse...

A questão é que a praxe não é um evento.
A praxe é uma organização, com actividade permanente, na qual os estudantes participam durante todo o curso e, no caso de algumas escolas, durante toda a vida.

A praxe vai muito para lá da recepção aos novos alunos, controlando de forma sinistra a rede social das faculdades em que está mais entranhada, desde as cerimónias de acolhimento às cerimónias de formatura (que estão vedadas aos não-praxistas).
Têm autênticas redes de informações, têm rituais, regulamentos penais, hierarquias bem definidas, e um enorme poder sobre os seus membros.
A praxe é uma seita!
Claro que a solução não é criar leis e regulamentos limitadores desta actividade em particular, mas antes promover actividades alternativas e mais salutares. Desde logo a participação activa e permanente na vida democrática das faculdades, a participação em actividades culturais, como o teatro ou a música, o desporto, o desenvolvimento de actividades científicas extra-curriculares.
A praxe domina todas as actividades não-lectivas dentro da faculdade. Dominam as associações de estudantes, que são autênticos centros de estágio para futuros políticos e dominam os grupos culturais (em grande parte das faculdades não se pode participar em actividades culturais, como as tunas ou grupos de teatro, sem participar na praxe).

A praxe, com os seus valores bafientos, é uma emanação do modelo socio-económico dominante, e este não está disposto a combatê-la.

As mortes foram uma consequência trágica de um tipo de comportamento, abjecto e retrógrado, que grassa em grande parte do ensino superior, com especial incidência no norte do país.