É incontestável que Saddam era um tirano e um assassino. Mas o carácter de Saddam nunca foi avançado como o motivo da guerra. A sugestão de uma ligação entre Saddam e a Al’Qaeda contribuiu para a confusão entre os ataques do 11 de Setembro e o Iraque, partilhada ainda hoje pela maioria nos EUA. Mas nunca foi persuasiva aos olhares mais críticos da comunidade internacional e foi rapidamente abandonada. No seu discurso final, a 17 de Março, antes de dar a ordem de invasão, Bush repetiu o seu argumento central em favor desta decisão. Saddam não havia destruído as suas armas de destruição maciça (ADMs), não cumprindo assim as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, e como tal constituía um perigo iminente para o povo dos EUA
Mas onde estão então as ADMs? O mais notável que Bush tem para apresentar são duas carrinhas, alegadamente laboratórios, embora nenhum traço de material biológico ou químico que pudesse ser usado no fabrico de ADMs tenha sido nelas detectado. Os inspectores do Pentágono têm tido livre acesso a todo o Iraque nos últimos dois meses, supostamente munidos da inteligência maciça, detiveram e certamente interrogaram 26 ex-oficiais iraquianos (incluindo o General Brigadeiro Alaa Saeed, que serviu de ligação com os inspectores da ONU(1). Saeed aceitaria alegremente os duzentos mil dólares oferecidos em troca de informação, mas, como afirmou, «não posso levar-vos ao que já não existe»(2) . Saeed confirmou que a primeira Guerra do Golfo e as subsequentes inspecções, sanções e ataques aéreos impediram com sucesso a reconstrução da capacidade de produção de ADMs.
É cada vez mais claro que os governos americano e britânico pressionaram os serviços de inteligência e manipularam os seus relatórios de forma a avançar com as suas ambições políticas. Por outras palavras, Bush e Blair mentiram aos seus constituintes e ao mundo.
A Agência de Inteligência do Departamento de Defesa dos EUA (DIA) publicou, em Setembro do ano passado, uma avaliação concluindo não existir qualquer informação credível sobre a produção e armazenamento de armas químicas pelo Iraque. Mas nessa altura, o secretário de Defesa, Donald Rumsfled, foi ao Congresso declarar que o regime de Saddam possuía reservas de gás mostarda, VX e sarin(3). No mesmo mês, Bush e Blair, reunidos em Camp David, citavam um relatório da Agência Internacional de Energia Atómica afirmando que o Iraque estava a seis meses de construir uma bomba. Mas tal relatório da AIEA não existe. Estas e outras circunstâncias constituem um caso de tão grave desinformação pública que até o ex-advogado de Richard Nixon, considera existir motivo para impeachment contra Bush.
Estará o povo iraquiano melhor agora? Os iraquianos sentem cada vez mais que em vez de terem sido liberados têm agora desordem e uma potência ocupante que parece mais interessada em reorganizar a administração e manter a segurança das fontes de petróleo do que em assegurar a saúde e bem-estar dos milhares de afectados pela guerra(4).
A prometida abertura democrática vai sendo adiada. Membros da administração Bush persistem em afirmar que a transição de poder será feita em breve, numa manobra clara de apaziguar ânimos. Mas vozes mais realistas afirmam que «as dificuldades que a ocupação pelos EUA tem enfrentado até agora demonstram que a reconstrução do Iraque irá implicar muito mais trabalho e ajuda de outros países. Isto irá demorar anos»(5).
No início de Junho, a Autoridade Transitória (AT) liderada pelos EUA declarou estar a preparar um código de conduta da imprensa, para «limitar a linguagem que possa fomentar violência e obstruir a construção de uma sociedade civil.» Mike Furlong, porta-voz da AT, assegurou não se tratar de censura, afirmando que o país está ainda demasiado frágil para a imprensa livre. O governo do EUA lançou em Maio uma estação televisiva de notícias por satélite em árabe. Segundo o jornalista independente Russell Mokhiber, a programação é produzida por Grace Digital Media, um estúdio controlado por Cristãos fundamentalistas.
Mas afinal este é o mesmo governo que limita liberdades civis domesticamente, oferecendo poderes reforçados ao Procurador Geral John Ashcroft, aprova um plano fiscal que oferece cortes de impostos substanciais aos mais ricos(6), e liberaliza adicionalmente o controlo de conglomerados da comunicação social permitindo-lhes controlar incontáveis jornais e estações de televisão e rádio. Com uma maior uniformização dos media só aumentará a facilidade de controlo social que permitiu levar um país para uma guerra.
1 Entre outros oficiais encontram-se o vice-presidente, o secretário geral da Guarda Republicana, o chefe de Estado das Forças Armadas, e o conselheiro científico de Saddam.
2 Los Angeles Times, 4 de Junho 2003.
3 «US News & World Report», 6 de Junho 2003.
4 Segundo Morten Rostrup, da organização Médicos Sem Fronteiras, a «coligação» tem demorado a dar assistência aos feridos e garantir o funcionamento de hospitais, dando evidências de falta de preparação para lidar com a presente crise de saúde pública.
5 Líder o Comité sobre Relações Estrangeiras, o senador republicano Richard Lugar.
6 Quando o comité do Senado e Congresso se reuniram para finalizar a proposta fiscal, desejando aumentar os benefícios fiscais dos mais ricos, mas limitados por um corte máximo de 350 mil milhões de dólares, resolveram excluir famílias recebendo entre dez e vinte seis mil dólares anuais de um benefício de quatrocentos dólares por criança, um bónus do qual as famílias mais ricas ainda virão a beneficiar.
Artigo publicado no Avante! Nº1542
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