quinta-feira, junho 09, 2005

Alvo a abater

Uma mentira contada repetidamente torna-se verdade: este era um dos “mantras” de Goebells. À conta deste princípio, a administração Bush conseguiu injectar na mente de muito do povo dos EUA a falsidade de uma associação de Saddam Hussein com a Al’Qaeda e os ataques do 11de Setembro. Sem fazer a ligação explicitamente, os dois eram mencionados consistentemente no mesmo discurso. Esta administração tem sido exímia na área de propaganda e “spin”(1), exibindo uma capacidade de rapidamente distribuir novos “sound-bites” aos seus porta-vozes, e tê-los assimilados e retransmitidos pelos média.

Nos últimos meses a técnica tem sido utilizada numa nova frente de batalha. Uma campanha que dura há mais de 2 meses, mas que tem levantado enorme oposição. Desta feita o combate é doméstico, e o alvo a abater é um velho inimigo público do neoliberalismo: o sistema de Segurança Social (SS). A campanha baseia-se na mentira de que este sistema está falido, e na ameaça de que muitos pensionistas não vão lograr receber as suas pensões. Estes argumentos ser-vos-ão familiares, pois também são apresentados como justificação para a privatização da Segurança Social em Portugal(2).

Estudos demonstram que este sistema está saudável e preparado para a aposentação da geração do pós-guerra, os “baby-boomers”. O actual sistema de SS, introduzido com o “New Deal” de F. D. Roosevelt, é financiado por impostos de rendimento, que ficam adstritos à SS. Durante a presidência de Reagan, uma descida de impostos para os mais ricos foi acompanhada de uma subida dos impostos da classe média e baixa. Era necessário estabelecer um excedente para viabilizar a SS, dizia-se. E de facto, agora, a SS colhe mais em impostos do que paga em benefícios. Este excedente, porém, vai esgotar-se cerca de 2052. Mas mesmo então o sistema poderá garantir 81% dos benefícios prometidos, podendo o fundo vir a ser reforçado com novos aumentos de impostos, ou pela atribuição de outros fundos orçamentais à SS. Para estender os benefícios completos até ao século XXII, bastariam apenas 3% do orçamento federal, menos que os custos da ocupação no Iraque, e equivalente ao benefício fiscal dado por Bush aos contribuintes com rendimentos superiores a meio milhão de dólares por ano.

A crise é falsa

Os número indicam portanto que a dita crise é falsa. Pelo contrário, o programa tem funcionado com sucesso. Os seus oponentes alertam para uma crise, não porque estejam motivados em salvar o sistema de benefícios, mas porque querem enterrá-lo e substituí-lo por um sistema privado. Funcionaria assim: em vezes do bolo de descontos para a SS renderem juros garantidos em obrigações do Estado, o dinheiro seria individualizado em contas pessoais e investido em acções na bolsa. Neste ponto, entra a fantasia dos proponentes da privatização, pois defendem que este investimento de risco dará lucros suficientes para poupar ao governo em benefícios que não teria de pagar no futuro. “O dinheiro é seu, deve dispor dele como entender”, argumenta com demagogia a administração Bush. Mas o que isto implica é que enquanto vai pagando os presentes benefícios, o governo tenha de pedir desde já empréstimos tremendos para investir na Bolsa, podendo vir ainda a ter que compensar no futuro as contas pessoais que não tenham lucrado nos investimentos na Bolsa. Assim, um efeito imediato seria um aumento do déficit orçamental. Certo é o investimento na Bolsa implicar pagamentos a corretores da Bolsa, uma clara vantagem para a Wall Street. E para o contribuinte? Na Grã-Bretanha, onde se instituíram as contas pessoais nos anos 80, pelo menos 75% não contêm fundos suficientes para providenciar pensões adequadas. Em parte porque os custos e riscos das contas privadas de investimento são superiores aos lucros, sendo 20-30% das poupanças gastas em despesas de gestão!

Apesar do tempo e recursos investidos pelos republicanos em promover a reforma da SS, tem havido grande resistência(3), e Bush atingiu o nadir de popularidade(4). Acreditou que a sua reeleição era também um mandato para atacar direitos sociais. Ao nível local, onde as questões domésticas pesaram mais nas eleições, medidas populares tentam implementar uma subida há muito necessária do salário mínimo. Este ronda os $5.15 por hora, mas caso o valor de 1968 tivesse sido ajustado para a inflação o valor hora do salário mínimo seria agora $13.80. A crescente precarização de emprego associada aos custos galopantes dos cuidados médicos deixa a maioria dos trabalhadores resistentes à ideia de mexerem no que resta do Estado social, e torna urgente a luta pelo progresso social.
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1) All the President's Spin: George W. Bush, the Media, and the Truth, de Ben Fritz, Bryan Keefer e Brenda Nyhan.
2) Ver artigo de Eugénio Rosa, Avante! Nº1608, de 23 de Setembro 2004.
3) Quando Schwarzenegge tentou uma privatização parcial das pensões de reforma estaduais na Califórnia, seguiram-se manifestações de enfermeiras, professores, polícias e bombeiros.
4) Em Maio, segundo a CNN, Bush atingiu os 46% de aprovação. E a oposição à reforma da SS teve o seu impacto. Numa sondagem da CBS, apenas 25% dos respondentes admitiram confiar na capacidade de Bush tomar as decisões correctas sobre a SS, 70% consideraram-se inseguros.

quinta-feira, junho 02, 2005

Cinema Alemão: A Queda e Os Últimos dias de Sophie Scholl

Tive recentemente uma experiência de cinema fantástica. Fui ao fim da tarde ver "A Queda - Hitler e o fim do Terceiro Reich" e de seguida vi "Os últimos dias de Sophie Scholl": ambos filmes alemães retrantando diferentes aspectos da segunda guerra mundial. O primeiro, Der Untergang no original, dirigido por
Oliver Hirschbiegel, conta com actuações excelentes, em particular de Bruno Ganz, que apresenta um Hitler mais complexo e subtil, horivelmente mais humano, do que estamos habituados a confrontar. Expõe, claro, os mais tradicionais ataques de fúria, mas toca-nos com a sua fragilidade física e com os seus momentos de ternura em momentos de maior intimidade, quando assumia o papel de pessoa e não o de Fuhrer. Mas mesmo nestes momentos, não fosse uma pessoa esqueçer-se, vem ao de cima a sua ideologia rígida, racista, e reacionária.
Mas o filme trata os dias finais de Hitler e seu círculo nacional-socialista mais intímo: onde se destacam as locuras de Hitler na sala de estratégia, a sua constante preocupação com a traição (Santana Lopes teria muito em que se rever), o ambiente claustrofóbico no bunker, o caos e destruição em Berlim. Um dos episódios mais terríveis é certamente quando Frau Goebbels dá a um anastésico às suas 6 crianças, para mais tarde vir sem remorços dar, a cada uma, uma cápsula de veneno mortal. Momentos mais tarde, ela e Joseph Goebbels comenteriam suicídio. Os Goebbels não concebiam a vida após o nacional-socialismo, como consta no testamento político deixado por ambos.
Mas a figura central do filme é Traudl Junge, a jovem secretária de Hitler, cujas recordações serviram de base para este filme. Junge era, por admissão própria, uma jovem apolítica, que desconhecia bem o regime que escolheu servir. Confessou-se atraida por curiosidade pelo "pai" da nação. Talvez um dos momentos mais marcantes foi o curto depoimento documental da própria Junge, pouco antes da sua morte, já com 81 anos, confessando que ficou horrizada com os crimes cometidos pelo regime nazi, que só veio mais tarde a conheçer (credível, talvez, mas apenas porque é sabido que Hitler evitou ter o seu nome associado por escrito à solução final), mas que a sua juventude não desculpava o seu desconhecimento. Esta revelação inundou-a quando visitou o túmulo dedicado a Sophie Scholl, que com uma idade equivalente à de Taudle Junge foi presa em 1943 na mesma altura em que Junge entrava ao serviço de Hitler.
Sophie Scholl, seu irmão Hans Scholl, e outros membros da organização Rosa Branca, lutaram clandestinamete contra o regime nazi dentro de fronteiras alemãs, com os meios ao seu alcançe, e com grande determinação e convicção. É com essa confiança na sua superiodade moral perante os crimes nazis, que Scholl, uma rapariga de 22anos, enfrenta o seu interrogador policial, o seu juíz e a guilhotina, de queixo erguido, e sem hesitações. O filme acompanha os seus últimos dias, desde a noite preparando um manifesto, ao dia em que o distribui na Universidade de Munique, no seguimento do qual é pressa, e o interrogatório, julgamento sumário, e execução expedita que se seguem.Os irmãos Scholl foram criados numa atmosfera mais educada e combativa. Mas tal também não desresponsabiliza quem não tenha tido essa boa fortuna. A consciência política e moral de Sophie Scholl contrastam com a ingenuidade e seguidismo de Junge, e demostram a diferença entre os que fazem história e os que sobrevivem para apenas a contar. Sophie Scholl foi executada, juntamente com outros membros da Rosa Branca. Mas num epilogo que sublinha que a sua luta mereçeu a pena, são mostradas imagems de aviões descarregado milhões de cópias do mesmo manifesto dos Rosa Branca sobre cidades alemãs.