Uns dias atrás, num zapping entre os três telejornais portugueses, ouvi a expressão «obesidade: epidemia do século XXI». Parece-me ainda cedo para prognosticar qual a epidemia deste século que ainda agora começa. Mas com a impacto mundial de doenças infecciosas como a SIDA, ou as doenças órfãs — aquelas para as quais existe tratamento, mas por afectarem sobretudo cidadãos pobres, a indústria farmacêutica não produz tratamento em massa por não ser rentável, como a tifóide, cólera, e malária — a obsessão com a obesidade é quase ofensiva.
É certo que nos países desenvolvidos o excesso de peso vem assumindo proporções assinaláveis, e as doenças cardio-vasculares são das principais causas de mortalidade. Mas em geral as discussões sobre obesidade centram-se nos nossos hábitos alimentares, na nossa prática de exercício, responsabilizando o indivíduo pelo seu excesso de peso. Mas a qualidade dos alimentos que recheiam as lojas também têm vindo a evoluir e a indústria alimentar também deve ser responsabilizada.
Uma das principais tendências no mercado alimentar é a substituição de comida não processada (a posta de carne ou peixe, o ovo, a peça de fruta, a couve) por substâncias comestíveis altamente processadas disfarçadas de comida (o autor Michael Pollan refere-se a
highly processed edible food-like substances). Segundo este autor, esta tendência é impulsionada pelas pressões económicas que regem a indústria alimentar e, mais recentemente, tem a cobertura legitimadora do nutricionismo (uma ciência ainda em estado embrionário).
A industria alimentar não consegue obter lucro vendendo matérias primas alimentares não processadas (arroz, cevada, soja, milho, trigo). Mas ao transformar essas matérias primas, criando um produto diferente, pode reclamar propriedade intelectual e inflacionar o seu preço, por exemplo substituindo milho por Corn Flakes. Quando o mercado começa a produzir muitas versões de Corn Flakes, elabora-se mais um pouco e produz-se Special K, ou Corn Flakes com chocolate, e depois barras de cereais. Assim, esta indústria pega em matérias primas baratas e produz produtos alimentares complexos e lucrativos. Em vez de comer uma peça de fruta, beba um néctar de fruta.
A necessidade de prolongar a vida de prateleira dos produtos alimentares é também promotora de maior processamento. O pão é disso testemunha. Um pão integral, feito a partir de farinha que contém todas as componentes da semente de trigo, é mais nutritivo, por incluir o gérmen do grão de trigo (e as tais omega-3 e vitaminas B). Mas exactamente por ser mais nutritiva, a farinha integral é também mais susceptível de ser atacada por roedores ou fungos. Por outro lado, uma farinha altamente refinada, misturada com preservantes, pode ser processada para produzir, por exemplo, Panrico, já cortado às fatias, que fica na prateleira meses a fio sem nunca se estragar. Mas cabe perguntar, qual o valor nutritivo de um alimento se não há um fungo que se preste a comê-lo e dele possa sobreviver? O pão, tradicionalmente uma fonte nutritiva variada, tornou-se assim numa fonte rica de açucares e aditivos.
O nutricionismo vem gradualmente desviando a nossa atenção para a importância de nutrientes e outros compostos (como os anti-oxidantes), criando a ideia de que para nos alimentarmos devemos preocupar-nos com o conteúdo nutritivo da nossa comida. Um produto alimentar pode adquirir uma valor acrescentado se for publicitado como possuindo, por exemplo, omega-3, ou como tendo níveis baixos de colesterol. Ao reduzir o alimento às suas componentes, abre-se a porta para um processamento cada vez mais intenso.
Mas ainda entendemos muito pouco sobre o efeito dos compostos nos alimentos sobre a nossa saúde. O colesterol na nossa alimentação, por exemplo, tem apenas uma correlação tangencial com os níveis de colesterol no sangue. O nível de incerteza desta ciência (Pollan chama-lhe uma ideologia, e diz que enquanto ciência está ao nível da cirurgia no século XVII) é evidenciado pelas flutuações entre o que é bom e terrível para a saúde. A manteiga, em tempos, ficou mal conotada por ter colesterol e gorduras saturadas. Inventou-se então um processo de hidrogenação para transformar as gorduras poli-insaturadas numa forma dura à temperatura ambiente (margarina). Incentivou-se então a substituição de um alimento moderadamente prejudicial à saúde, por um outro que pode ter efeitos ainda mais prejudiciais, pois mais tarde descobriu-se que os óleos hidrogenados têm gorduras trans, implicadas em doenças cardíacas e cancro.
Temos então este combinação letal, uma indústria alimentar que processa cada vez mais intensamente os alimentos, eliminando nutrientes das materiais primas, e uma ideologia (nutricionismo) que chama a atenção para a importância de certos componentes, que a indústria alimentar se presta então a re-introduzir nos alimentos através de mais processamento. Não seria mais saudável simplesmente voltar a comer comida menos processada. Afinal a dieta mais associada à obesidade, diabetes e doenças cardiácas é precisamente a "dieta ocidental", caracterizada por farinhas refinadas, muita carne (também processada, e industrializada), pouca fruta e vegetais, muito açúcar (em particular sob a forma de xarope de milho rico em frutose, HFCS, mais barato de produzir e armazenar).
Há quem promova uma dieta mais próxima da dieta ancestral. Mas não será preciso recuar tanto no tempo. As chamadas dietas tradicionais são em geral todas mais saudáveis, e têm como denominador comum incluirem comidas menos processadas e combinações de alimentos aperfeiçoadas pela tempo e encapsuladas nas práticas culturais. Por exemplo, muito antes de se saber o que eram anti-oxidantes ou que poderiam ter um efeito retardador do envelhecimento, no Mediterrâneo já se temperava tomate com azeite. Resulta que os licopenos (um caroteno de elevado efeito anti-oxidante) do tomate tornam-se assimiláveis pelo organismo quando o tomate é ingerido com azeite.
Infelizmente, mesmo os alimentos menos processados estão a perder qualidade em virtude de uma agricultura mais intensa. Frutos que levam menos tempo a desenvolverem-se na árvore, para chegarem mais rapidamente ao mercado, são nutritivamente mais pobres. O mesmo sucede com as carnes. As vacas, por exemplo, são injectadas com hormonas de crescimento para se desenvolverem mais rapidamente. As condições de produção industrial de galinhas e porcos, em condições pouco higiénicas, força os produtores a administrarem grandes quantidades de antibióticos, fomentando a evolução de resistência a antibióticos entre bactérias infecciosas, com consequências sobre a incidências de infecções resistentes em humanos.
A indústria alimentar tem outras perversidades. A globalização deste sector tem conduzido vários países a concentrarem a sua agricultura num número reduzido de produtos, tornando esses países vulneráveis às oscilações de preços e não-autónomos do ponto de vista alimentar. A produção de comida tornou-se um sector que consome muitos hidratos de carbono, na produção de fertilizantes, de pesticidas, e no transporte de alimentos. Estima-se que custam 10 calorias em combustíveis fósseis para produzir 1 caloria de alimento. Uma balança muito desequilibrada, sobretudo quando pensamos que tradicionalmente a única energia necessária para produzir comida era a solar e o trabalho humano.
domingo, fevereiro 24, 2008
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