domingo, maio 18, 2008

Luta das ideias

Intervenção na
V Assembleia de Organização do Sector Intelectual de Lisboa do PCP
Intelectuais Comunistas
Organizar a Luta, Alargar a Influências
18 de Maio de 2008


Luta das ideias

Escreveu o poeta francês Baudelaire que «O melhor truque do Diabo é tentar convencer-nos que não existe.[1]»

E um dos truques mais pérfidos e insidiosos do capitalismo é tentar convencer-nos que a luta de classes não existe, que o local de trabalho não é palco de exploração mas de colaboração, que o capital é necessário e que não existe alternativa ao capitalismo, mas que este pode ser reformado, melhorado, humanizado, embora sejam inevitáveis alguns sacrifícios, que chegámos ao fim da história, incluído a história das ideias, e que esta é a ordem natural das coisas.

Marx no Capital previa isto da seguinte forma:
“Os avanços da produção capitalista desenvolvem uma classe trabalhadora na qual a educação, tradição, e hábitos encaram os requisitos desse sistema como leis naturais evidentes.”[2]
Nessa mesma obra, porém, Marx desmistificou o capital e revelou como a verdadeira fonte de valor reside no trabalho humano e que o lucro capitalista resulta da expropriação dessa força de trabalho, demonstrou como o sistema capitalista não é nem natural nem intemporal, tornou evidente que a lógica que lhe está subjacente—a acumulação de lucro e não a satisfação das necessidades dos seres humanos—reproduz inexoravelmente exploração e desigualdades.

Essa sim é uma inevitabilidade, que nenhuma reforma, social-democracia ou terceira via tem logrado escapar.

Mas essa realidade convém manter por detrás da cortina. Daí os “instrumento[s] de controlo e de manutenção, legitimação e reprodução da ordem económica e social”[3].

Somos assaltados a toda a hora por estes instrumentos na escola e no local de trabalho, no jornal de manhã, televisão à noite, filme de fim de semana, e na publicidade que nos assalta a cada esquina. Talvez em nenhuma situação histórica anterior à que enfrentamos hoje, a classe dominante empenhou tantos e tão diversificados meios e tanto poder, não apenas em difundir a sua ideologia, mas em proscrever, silenciar e até criminalizar a ideologia que de forma mais consequente se lhe opõe: a nossa ideologia, o marxismo-leninismo.

Manipula e distorce conceitos, esvazia conteúdos, substitui informação por propaganda e mentira, apresentada de forma fragmentada e descontextualizada, e embrulhada com entretenimento e sensacionalismo.

Banaliza a violência, fomenta as divisões entre povos e a alienação do outro, enquanto suprime a realidade concreta dos conflitos entre classes sociais. Promove o individualismo e a lei do mais forte como princípios naturais ao homem. Promove a apatia, o conformismo e a resignação. Promove um clima de medo, ameaça e intimidação, que abre as portas a políticas securitárias, às limitações dos direitos e liberdades dos cidadãos, e às guerras de agressão. Reduz as relações sociais ao consumismo, e o sujeito político ao de mero espectador.

Faz uso do revisionismo histórico, reprimindo a memória colectiva, em particular, a das grandes conquistas sociais fruto da luta dos trabalhadores e dos povos. Mas nesta batalha de ideias—nesta frente ideológica da luta da classes—enfrenta resistência e oposição.

Aqui estamos camaradas, para travar. nas palavras de Fidel Castro,
“A batalha da verdade contra a mentira; a batalha do humanismo contra a desumanização; batalha da irmandade e fraternidade contra o mais grosseiro egoísmo; batalha da liberdade contra a tirania; batalha da cultura contra a ignorância; batalha da igualdade contra a mais infame desigualdade; batalha da justiça contra a mais brutal injustiça; batalha pelo nosso povo e a batalha por outros povos, porque se vamos à sua essência, esta é a batalha de cada povo por toda a humanidade.”[4]
Nestas batalhas enfrentemos, sem dúvida, uma grande assimetria de meios.

Estamos todos conscientes da enorme influência da comunicação social, em particular da televisão. Com legitimidade, assinalamos como a comunicação social, nas mãos de um número cada vez menor de grupos económicos, se limita a simular um debate público, demitindo-se da responsabilidade de dar espaço às alternativas efectivas. E reforçando assim a ideia da inevitabilidade. E reclamamos, também com legitimidade, um tratamento mais isento da luta dos trabalhadores e da actividade do nosso partido, em particular por parte dos meios de comunicação social públicos.

Mas de tanto ouvir camaradas queixarem-se da comunicação social, urge-me dizer o seguinte:
não tenhamos ilusões, nem estejamos à espera que a comunicação social nos dê espaço para que então possamos travar equilibradamente a luta de ideias. Mais que protestar contra a assimetria de meios, atrevo-me a dizer que há que assumi-la. E devendo nós naturalmente procurar diversificar os nossos meios, há que garantir, isso sim, o uso eficaz e consequente dos meios que estão nas nossas mãos.

Como me diz frequentemente um camarada, ter um Avante! que fica por ler ou vai para o papelão, em vez de ser passado a um amigo ou potencial interessado, é um crime. Ter documentos esquecidos no centro de trabalho, ainda por distribuir, é esbanjar os recursos que temos. Haver um camarada ou amigo que não é contactado há semanas ou meses, é não tirar proveito daquele que sempre foi e continua a ser o nosso grande meio de influência: o contacto humano, directo e pessoal.

Um telejornal chega diariamente a milhões de pessoas, mas um partido organizado, ligado aos trabalhadores e às populações, às suas preocupações e aspirações, tem nos seus militantes um instrumento de influência poderosíssimo.

O nosso principal campo de batalha não é na televisão, é nos cafés e nas esquinas, nas escolas e locais de trabalho, nos locais apropriados e nos inapropriados.[5]

Para nos prepararmos para essas discussões há que “estudar, estudar mais, estudar sempre”, quer seja lendo os muitos elementos úteis ao nosso dispor, quer procurando esclarecimento entre camaradas—e essa é uma responsabilidade de todos nós, da qual não nenhum de nós se podemos demitir.

Mas sobretudo,a batalha de ideias, trava-se no seio da luta.

Citando novamente Fidel:
“a batalha de ideias não significa só princípios, teoria, conhecimentos, cultura, argumentos, réplica e contra-réplica, destruir mentiras e semear verdades; significa actos e realizações concretas.”[6]
Porque é mais fácil mistificar e distorcer, do que desmontar a mistificação e esclarecer, porque desejamos não só persuadir e convencer, mas transformar mentalidades, porque não só lutamos contra o capitalismo, mas aspiramos a criar uma nova sociedade, não podemos esperar que a luta das ideias se ganhe com uma conversa ou um panfleto ou a mera presença em iniciativas. Só mesmo a participação e envolvimento activo e persistente nas lutas sociais pode transformar não só as circunstâncias mas o ser humano.

Temo que devido à fase histórica em que estamos, fase sobretudo de resistência e de reagrupamento de forças, na qual nos entregamos à luta, mas no seio da qual, em particular nos movimentos unitários, o objectivo de superação do capitalismo nem sempre está patente, se perca de vista que aspiramos não só a combater um sistema virulento e bárbaro, mas a construir algo novo. Mesmo dentro do nosso partido há quem reafirmando o seu compromisso com a luta, diz não ter esperança de superar o capitalismo durante a sua vida.

Mas se a história recente demonstra alguma coisa camaradas é que podem haver câmbios repentinos—quem se atreveria, por exemplo, a prever há dez anos a importância do processo Bolivariano na Venezuela e não só—e como afirmámos no XVII Congresso:
grandes perigos coexistem com grandes oportunidades.

Temos de reclamar a superação do capitalismo e a construção de novas formas de prática política, de organização económica e de relações sociais para o discurso público, para que no seio da luta se procure não só resistir, mas reflectir, discutir e construir o embrião dessa nova sociedade.

Para tal não podemos limitar-nos a uma declaração de intenções, sobre algo a atingir num futuro remoto e distante. Essa nova sociedade tem de ser palpável, para que se possa exercer o «direito à esperança» que muito acertadamente reivindicamos durante a campanha presidencial.

Não são precisas novas ideias para galvanizar as forças progressistas. Não é preciso, qual iogurte ou dentífrico, dar-lhe um novo sabor ou embalagem.

O objectivo é simples. A criação de uma sociedade sem exploração, na qual cada ser humano possa desenvolver o seu potencial em liberdade, uma sociedade na qual o “livre desenvolvimento de cada pessoa é condição para o livre desenvolvimento de todos”, uma comunidade de paz, solidariedade e cooperação. Parece-me ser um objectivo a aspirar e um projecto inspirador, sem ser necessário mais enfeites.

O objectivo é simples, mas o caminho pode ser tortuoso. No concreto, como alcança-lo?, que formas terá?

A Conferência Nacional do PCP sobre questões económicas e sociais ofereceu um espólio riquíssimo de contributos para outro rumo e uma nova política ao serviço do povo e do país.

Será no seio da luta participada, e em função das circunstâncias concretas, tirando lições das experiências da história, que iremos descobrindo a resposta. Não há fórmulas mágicas, nem a nova sociedade irá cair do céu. Que assim seja não é fugir à pergunta, mas querer restituir aos trabalhadores e ao outros cidadãos o papel de sujeito político.

Pois a forma de alcançar uma nova sociedade, e forma concreta que essa sociedade assumirá, é inseparável do processo de luta para a construir. O movimento e o objectivo são um todo. Essa é a dialéctica da prática revolucionária.

Viva a luta dos trabalhadores!
Viva a V Assembleia de Organização do Sector Intelectual!
Viva o Partido Comunista Português!

[1] Charles Baudelaire, “Le Joueur généreux”, 1864:
Elle ne se plaignit en aucune façon de mauvaise réputation dont elle jouit dans toutes les parties du monde, m'assura qu'elle était, elle-même, personne plus intéressée à destruction de superstition, et m'avoua qu'elle n'avait eu peur, relativement à son propre pouvoir, qu'une seule fois, c'était le jour où elle avait entendu un prédicateur, plus subtil que ses confrères, s'écrier en chaire:
«Mes chers frères, n'oubliez jamais, quand vous entendrez vanter le progrès des lumières, que plus belle des ruses du diable est de vous persuader qu'il n'existe pas!»

[2] Karl Marx, Capital, Volume I, Capítulo XXVIII

[3] Vasco Cardoso, “A luta das ideias no regime democrático e a intervenção do Partido”, O Militante, Jan/Fev 2007, Nº 286

[4] Fidel Castro Ruz, III Congresso da OPJM, 10 de julho de 2001.

[5] Em Julho de 2007, a Secretária de Estado da Saúde Carmen Pignatelli: “Vivemos num país em que as pessoas são livres de dizer aquilo que pensam… desde que seja nos locais apropriados. Eu sou secretária de Estado, aqui nunca poderia dizer mal do Governo. Aqui. Mas posso dizer na minha casa, na esquina, no café. Tem é de haver alguma sensibilidade social…”.

[6] Fidel Castro Ruz, 40 e 41 Aniversário da UJC e OPMJ, respectivamente, 4 de Abril de 2002

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