sexta-feira, abril 03, 2009

Cunhal e Darwin

As notas escritas por Álvaro Cunhal sobre a obra de Darwin, republicadas no Tomo II das suas Obras Escolhidas e no Avante! desta semana, são mais uma pequena ilustração de um facto incontestável: Álvaro Cunhal foi um notável intelectual. Além das qualidades exemplares como organizador e dirigente político, como teórico marxista-leninista e analista da situação concreta portuguesa, nas suas múltiplas vertentes (económica, social e política), exprimiu também as suas qualidades humanas através da produção artística, como são exemplos a sua arte plástica e escrita criativa. Apesar das suas raízes familiares burguesas e sua formação académica em Direito, enquanto militante do PCP (a partir de 1931, com 17 anos) aprofundou uma ligação estreita com os trabalhadores e o povo português, condição indispensável para conhecer as carências e aspirações mais profundas do nosso povo, o que veio a justificar inteiramente a sua auto-caracterização, em 1950, durante o seu julgamento perante o tribunal plenário, como «filho adoptivo da classe operária».

Manteve porém sempre a sua natureza de intelectual, de estudo constante, de uma curiosidade sem limites. Era capaz de conversar em detalhe tanto sobre formas de rega como de design finlandês. E mesmo nas condições mais austeras procurava sempre aprofundar o seu conhecimento intelectual. As notas sobre a obra de Darwin foram publicadas após a sua terceira passagem pelas prisões fascistas (foi preso em 1949), quando ainda na Cadeia Penitenciária de Lisboa, e antes da sua transferência para a Cadeia do Forte de Peniche, donde se veio a evadir, juntamente com outros presos, na épica fuga de 1960. Ali, teve oportunidade de ler e estudar mais atentamente as duas obras fundamentais de Charles Darwin, nos seus títulos completos: Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural, ou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Sobrevivência (1859) e a Descendência do Homem, e a Selecção em Relação ao Sexo (1871).
Não era a primeira vez que lia Darwin. Já na sua tese final na Faculdade de Direito Aborto, Causas e Soluções (em 1940)i – mais uma ilustração do seu humanismo e capacidade de antecipar o tratamento de temas determinantes, neste caso para a condição feminina – Cunhal faz referência a Darwin e aos panfletos sobre os princípios da população humana do Rev. Thomas Malthus, que inspiraram Darwin a desenvolver a teoria da selecção natural. Não fossem as condições adversas em que Cunhal estudou as obras de Darwin já suficientes motivos de admiração, há que acrescentar dois elementos adicionais que fazem da atenção dada a Darwin ainda mais reveladoras do seu espírito intelectual.

Por um lado, durante a primeira metade do século XX, Darwin foi uma figura relativamente relegada. Durante a sua vida, tinha sido uma figura de referência, e as suas obras eram alvo de grande atenção e debate, em particular a sua teoria de evolução (por oposição à ideia conservadora de criação independente das espécies). Ainda durante a sua vida, as suas ideias foram apropriadas por várias figuras políticas, para justificar e dar fundamento natural ao individualismo e competição promovidos pela burguesia industrial ascendente. Mas após a morte de Darwin, em 1881, embora a evolução se tivesse estabelecido, a influência da Origem e das restantes teorias aí enunciadas, incluindo a teoria da selecção natural, perderam influência, e outras escolas de pensamento dominaram, incluindo escolas que reintegraram a teleologia e o progresso na visão de evolução (ideias rejeitadas por Darwin).

Perspectiva dialéctica

No início do século XX, foram redescobertas as experiências de Gregor Mendel, e o Mendelismo – ou a evolução por meio de mutações – tornou-se uma área de intensa investigação científica. Isto é, a biologia e o pensamento evolutivo encontrava-se profundamente dividido e fragmentado. Só na década de 1940 começou a ganhar raízes uma visão mais integradora da biologia (a Síntese Moderna), sintetizando a evolução darwinista de evolução por selecção natural, a paleontologia, a sistemática e a área mais recente da genéticaii. E só em 1959, quando foi comemorado o centenário da Origem, é que as ideias de Darwin voltaram a ser discutidas de forma mais generalizada.

Por outro lado, na URSS, pátria do socialismo e referência para qualquer comunista, a figura mais influente no campo da biologia durante a década de 1930-40 foi Trofim Lysenko, que rejeitava a genética mendeliana e a evolução darwiniana, defendendo antes ideias neo-lamarckianas, em particular a herança de características adquiridas. A influência de Lysenko teve efeitos dramáticos sobre o avanço da ciência agrícola soviética, e foi responsável, na URSS, por um considerável atraso científico na área da Biologia.

Apesar deste contexto, Cunhal, na prisão, na condição de isolamento prolongado, leu Darwin e foi capaz de reconhecer a sua importância científica, criticando inclusivamente a falta em Portugal da sua discussão mais alargada e do seu ensino (que se encontra hoje novamente em condição empobrecida: a evolução biológica do ser humano não é tratada nos actuais programas curriculares). Cunhal faz mesmo uso presciente de uma metáfora («só é possível o estudo da biologia iluminado pela ideia de evolução») que constitui o título de um artigo científico de Dobzhansky (de 1973) – «Nada em Biologia faz sentido excepto à luz da Evolução»iii – que hoje é frequentemente citado e parafraseado. Cunhal salienta também as limitações do tratamento de Darwin relativamente ao Homem social. Darwin, porém, não pretendeu nos seus estudos abordar esta componente social. Embora Darwin se tenha manifestado intrigado pelo social noutras espécies (caso das formigas e abelhas), não logrou encontrar uma explicação para comunidades sociais animais, que só nos anos 1960-70 veio a ser melhor entendida do ponto de vista biológico.

Em Contribuição para o Estudo da Questão Agrária, publicado em 1966 iv, Cunhal acusa Darwin de ter «reintroduzi[do] os princípios malthusianos no estudo das sociedades humanas». Porém, esta falácia naturalista não foi cometida por Darwin, mas antes por outros, com ambições políticas, que se apropriaram das ideias darwinistas e desenvolveram o chamado «Darwinismo Social», caso de Herbert Spencer, e fundaram movimentos eugénicos, que assumiram grande influência no início do séc. XX. É certo que Darwin se inspirou nos trabalhos de Malthus (tal como veio a suceder com Alfred Wallace, co-descobridor da teoria da selecção natural), mas Darwin recolhia inspirações de múltiplas fontes, aproveitando ideias para as aplicar no seu tema de interesse: a adaptação e diversidade biológica. É impreciso pensar em Darwin como um subscritor das ideias políticas de Malthus, cujos trabalhos eram efectivamente panfletos políticos contra o apoio social do Estado às massas empobrecidas. Na verdade, a competição por recursos limitados não é sequer condição necessária para a actuação da selecção natural. Trata-se de um caso particular, destacado por Malthus, que permitiu a Darwin inferir um processo mais geral. O sublinhar do papel da competição deve-se mais aos que se apropriaram da onda darwiniana para fins políticos. Tão pouco será correcto historicamente dizer que Darwin desprezava os «selvagens» da Tierra del Fuego ou era racista. Darwin pertencia a uma família anti-esclavagista, e ficou profundamente impressionado pelo tratamento dos escravos no Brasil e pelas condições extremas dos Fueginos, regressando da viagem no Beagle mais convencido de que todas as «raças» pertenciam à mesma espécie, e portanto todas teriam direito à sua emancipaçãov).

Cunhal sublinha na sua análise «a incapacidade [de Darwin] para compreender que as transformações quantitativas se convertem em qualitativas». Darwin efectivamente propunha uma visão gradual da evolução, à semelhança das transformações geológicas graduais propostas por Lyell. Cunhal faz uma crítica ao gradualismo, aplicando a sua formação marxista-leninista, que veio na segunda metade do século XX a ser defendida por um biólogo evolutivo, também marxista: Stephan Jay Gould e a teoria do pontualismo. Efectivamente, há evidências crescentes de que pequenas modificações genéticas podem dar azo a significativas alterações nas características individuais, e a alterações qualitativas na evolução.

Por não consistir parte do seu objecto de estudo, por limitações da sua origem burguesa, ou por mero receio, Darwin não aplicou o seu materialismo histórico à evolução social do Homem. Felizmente houve quem o tenha feito. No funeral de Marx, em 1883, Engels proclamou que «tal como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, assim Marx descobriu a lei da evolução na história humana.» Não devemos porém cair no erro de pensar que em dado momento o processo de evolução orgânica humano terminou, o homem se libertou da sua história biológica e entrou numa fase em que apenas passaram a actuar as leis sociais do materialismo histórico. O ser humano é um biológico e social e, tanto as leis marxistas como as darwinianas, de modo dialético, continuam a influenciar a sua história.
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i) Reproduzido nas Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, 1935-1947, Tomo I. (2007) Edições Avante!
ii) Sobre a história da biologia evolutiva após a morte de Darwin até aos nossos dias, vejam a introdução de Evolução: Conceitos e Debates (2009) Esfera do Caos.
iii) Publicada em português em Evolução: História e argumentos (2008) Esfera do Caos.
iv) Disponível na internet em http://www.marxists.org/portugues/cunhal/ano/agraria/
v) Ver o livro recente Darwin's Sacred Cause: How a Hatred of Slavery Shaped Darwin's Views on Human Evolution, (2009) de Adrian Desmond e James Moore, Houghton Mifflin Harcourt.

4 comentários:

Olga Santos disse...

A aplicação dos princípios de Darwin à teoria sociológica deu origem ao evolucionismo social, de que Marx e Engels são representantes. O evolucionismo social é a base do racismo e da intolerância, como toda a gente sabe.
Mais uma razão para percebermos que a a teoria de Marx (genial economista do séc. XIX) deixou hoje de fazer sentido e muito menos quando é assumida como religião pelos seguidores da famosa Internacional

filipe disse...

Sobre o comentário anterior (Olga Santos): "como toda a gente sabe" - ou nem tanto...- Marx e Engels rejeitaram nas suas obras o evolucionismo social, muito menos são seus representantes. Nos antípodas desta concepção, defenderam e praticaram o método materialista dialéctico para analisarem a "evolução" das sociedades humanas, isto é, a uma visão meramente quantitativa e gradualista, contrapuseram uma teoria que associa as transformações quantitativas às qualitativas, sublinhando que às primeiras se sucedem as segundas, sob a forma de revolução. Por ex., rejeitaram que o capitalismo, por via evolutiva, dê lugar ao socialismo. Associar Marx e Engels aos evolucionistas (Spencer, depois Huxley, Holt, Chardin e outros) revela um profundo desconhecimento.
Não merece, sequer, comentário a baboseira que intenta associar os comunistas e o seu combate a uma atitude religiosa.
Para o André Levy,saudações fraternas.

CRN disse...

Olga,

Antropologia - Child

Depois diz qualquer coisa, nos vamos esclarecendo.

A revolução é hoje!

Mário Pinto disse...

Olga,

Será mais facil assim:
Antropologia - Childe

A revolução é hoje!