quinta-feira, janeiro 07, 2010

Casamento Homossexual, adopção e família

Amanhã a Assembleia da República vai discutir 3 Projectos de Lei (do BE, PEV e PSD) e uma Proposta de Lei do governo relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não tive (infelizmente) tempo de comparar as várias propostas. Mas há vários elementos que se têm misturado na discussão em torno desta questão (e alguns notoriamente ausentes).
Antes de mais cabe lembrar que na legislatura passada o tema foi discutido na AR, e foi rejeitado pela então maioria PS soube o argumento hipócrita de que o assunto não constava no seu programa de governo.

Face à necessidade, durante a passada campanha eleitoral para as legislativas, o PS ergueu várias bandeiras "de esquerda", incluindo a do casamento homossexual, tendo inclusivamente dado posição de destaque nas suas listas eleitorais ao Miguel Vale de Almeida, que podendo merecer algum respeito pelo seu trabalho académico, nesta instância assumiu uma posição de oportunismo político, de quem tem apenas um tema político motivador e se aliou a quem o ofereceu a possibilidade de entrar na AR. Quase que merece a qualificação de prostituto político.

A direcção do PS assumiu esta aposta, muito embora a questão não reunisse consenso entre os seus militantes e elegíveis, como rapidamente se constatou, com deputados do PS manifestando-se contra a Proposta do Governo e advogando a realização de um referendo, aliando-se a elementos da direita conservadora.

A posição conservadora não é de espantar. Não é apenas a homofobia mais ou menos assumida. Nem a ideia retrograda de que o casamento serve para procriar. Vai mais fundo. A família tradicional é o núcleo mais pequeno da organização da sociedade burguesa, o garante dos valores morais conservadores. A família, centrada no casal heterossexual, é uma referência ideológica da direita. Nos EUA, tal expressa-se na frequente referência (e avaliação de candidatos) aos valores familiares (family values). Esta questão foi aliás objecto de uma análise histórica de referência por parte de Engels, na Origem da Família, Propriedade Privada e o Estado (1884). Portanto, independente da posição que se tome sobre o casamento homossexual, temos de ter presente que esta questão se está a levantar num momento em que a direita promove a família e o casamento como valores conservadores.

Deve também considerar-se que a questão do casamento entre casais do mesmo sexo está longe de ser a questão mais importante e prioritária para os homossexuais portugueses, embora seja a bandeira principal de alguns das figuras mais mediáticas do "movimento" homossexual nacional, caso do MVdeA. Creio que a homofobia e a sua tradução em formas de violência directa e indirecta são questões de bastante mais gravidade. Por violência indirecta, refiro-me à bem caracterizada pressão sobre jovens homossexuais, que se debatem sozinhos com medo, sentimentos de alienação, que se questionam sobre a sua sanidade, e são demasiadas vezes levados à auto-repressão, mutilação e mesmo suicídio.

Estes elementos não podem ser ignorados. Mas dito isso, não tenho dúvidas, que por uma questão de princípio e coerência com a Constituição da República Portuguesa, os casais homossexuais devem ter igual direito a celebrar um contrato cívico de casamento, e a beneficiar de todos os direitos e regalias que daí advêm. O Art. 13 da CRP afirma claramente que:
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
É aliás este princípio constitucional que torna desnecessário a realização de um referendo.

Há que reclame que os casais homossexuais não precisam do casamento. Podem recorrer à figura da "união de facto". Mas esta figura jurídica exige condições (como prova de que a relação persistiu, se não me engano, durante 5 anos) e não oferece o mesmo tipo de direitos e regalias que a figura de casamento. Porque raio um casal homossexual há de esperar 5 (ou outra período) até consagrar legalmente a sua relação?

Outros reclamam que os casais homossexuais podem celebrar um contrato, mas que não deve ter o nome de "casamento", como se essa palavra fosse exclusivamente para casais heterossexuais por outra razão que não a de tradição. Chama-se o que se quiser, a verdade é que sendo em termos de conteúdo um casamento não faz sentido que se chame "bacalhau".

Ainda outros, aceitam o casamento homossexual, mas desprovido do direito à adopção. Vem assim à superfície uma forma de homofobia. O medo que uma criança educada por parentes do mesmo sexo "corre o risco" de vir também a ser homossexual. Basta pensar que a vasta maioria de homossexuais são filhos de casais heterossexuais para entender que tal não faz qualquer sentido. E aliás há inúmeros estudos académicos que demonstram que tal não é facto. Outro argumento é o preconceito conservador de que uma criança precisa da figura de um pai masculino e de uma mãe feminina para se desenvolver normalmente. Mais uma vez os estudos académicos demonstram que tal não é o caso. Crianças adoptadas por casais homossexuais masculinos e femininos são tão "normais" como as criadas por casais heterossexuais (do ponto de vista de desenvolvimento intelectual, de relacionamento social, de progressão profissional, etc). Até diria têm a vantagem de crescerem sem os preconceitos homofóbicos e com uma maior tolerância pela diferença. Um casal homossexual estável e que propicie um ambiente doméstico harmonioso será certamente um lar mais conducente ao desenvolvimento das potencialidades de uma criança adoptada que uma criança nascida de um casal heterossexual de um machão misógino e mãe submissa, ou de um casal divorciado sendo forçado a crescer isolado de um dos seus progenitores. A família tradicional há muito que deixou de existir. E não foi preciso o casamento homossexual para tal acontecer. Quantos destas natalícias não terão reunido pessoas já no seu 2º ou 3 casamento e irmãos com pais diferentes.
Não tenham medo que a homossexualidade não é contagiosa. Deixem os casais homossexuais apaixonados que querem celebra laços de matrimónio poderem ter os privilégios fiscais dos casais tradicionais, poderem ter a garantia de heranças que sejam um reflexo das suas efectivas relações amorosas, adoptar e educar crianças. Mas não deixem que este alargamento da figura do casamento e da noção de família conduza a um reforço dos elementos mais retrogrados e conservadores associados aos ditos valores familiares em prejuízo dos direitos individuais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que confusão! Cabeças bem-pensantes a dar a mão ao pensamento chunga! Ainda por cima citando ” A Origem da família…”! Não é nada disso! Se fugir ao pensamento moralista e conservador do sector que apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo, verá que a sua posição crítica sobre o casamento – e que eu apoio – não se compadece com a flexibilização do mesmo aos homasexuais. Ou se é a favor do casamento ou contra, e os argumentos contra são válidos quer os cônjuges sejam brancos, pretos, homens, mulheres, homosexuais ou o que quiserem ser.
Como é que alguém que tem uma posição crítica como a sua sobre o casamento se permite defendê-lo para os gays? Isto, sim, é homofobia, caridadezinha, misericórdia com os desprotegidos. De resto, e para que conste, há muito que os sectores mais esclarecidos vão abordando a questão da homossexualidade, desclassificando-a, porque consideram que o amor é independente do género do seu objecto, deixando ao Ser a liberdade de amar quem se quiser amar. Ninguém manda na cama de cada um! Ora o amor, platónico ou físico nada tem a ver com espartilhos, necessários, isso sim, a cada sociedade constituída. Sabia, acho que sabe, pois claro!, que só no séc. XIX é que o casamento passou a estar associado ao amor romântico? Querer assumir a diferença gay, ter orgulho nessa diferença e depois pretender aquilo que de mais conservador a sociedade construiu é uma contradição insolúvel e um recuo civilizacional, sobretudo ao nível dos sectores da esquerda que fizeram da luta contra o casamento uma bandeira libertadora.
Judith Butler, um ícone do movimento queer, subsidiário do desconstrutivismo, tão citado neste blogue, lésbica assumida e professora catedrática de retórica e literatura na Universidade de Berkeley questionando o movimento pró casamento homossexual afirmou que ” não tinha nada a ver com isso, cada qual sabe de si, mas, afinal, para que querem eles casar?” … e nunca aderiu a este tipo de movimentos…reaccionária? quem nos dera!
A falta de seriedade e elevação desta discussão já enjoa! é mistificadora porque se apresenta como a posição dos progressistas, é básica porque decorre de uma construção moralista , com apelos populistas do pior, e coloniza o pensamento dos mais desprevenidos e ocupa as horas mortas dos pobres, desempregados, que lampejam com alguém em pior situação.
Nunca tão poucos ocuparam tantos e por tanto tempo!
E quandoos exibicionistas gay vierem para a praça pública mimar o comportamento do “casal”, quero ver quem os vai proteger, então, da homofobia que se agravará, estou certa…
É que é pela diferença que os homossexuais se afirmarão até ao dia em que ela deixe de existir.
Para acabar, a proposta de lei, truncada da possibilidade e não do direito – o direito é exclusivo da criança adoptanda – de adoptar é pura e simplesmente inconstitucional e não vejo a mesma força na sua defesa. Ai, a homofobia é lixada!
Saudações

Clara Belo disse...

Achei este post muito bom, ao contrário do testemunho anterior ao meu. Tiraste-me as palavras da boca. Muitos parabéns André.