sexta-feira, janeiro 27, 2023

Actor, interprete, representante

 Não venho provavelmente acrescentar nada que não tenha já sido dito sobre a recente controvérsia em torno da adaptação de «Tudo sobre a minha mãe», no Teatro São Luiz. Mas queria organizar umas ideias e partilhá-las. Fui levado a tal, após ler uma entrevista a Eddie Remanyne (ver abaixo)

Um actor é um intérprete (de um texto, um personagem, do conceito do encenador ou realizador, etc.). Ele representa, mas não no sentido parlamentar do termo. (Ele-actor ou ela-actriz, como é óbvio.) No seu papel de actor, não está no palco ou tela como representante da mesma forma que um deputado está no lugar o seu partido ou representa o seu distrito.
A personagem que o actor interpreta, esse sim, é representante, retrata, sendo mais ou menos representativa em função da qualidade do texto, encenação e actor. É desejável por isso que para um dado papel se tenha o actor mais indicado possível para uma dada representação de uma obra. O que isso significa depende das opções do encenador. Tal pode implicar a qualidade geral do actor enquanto tal, as suas características físicas enquanto corpo humano, o timbre de voz, etc. Estas últimas características poderão até nem corresponder a uma visão estreita e ultra-realista do texto e personagem.
Pode ser interessante ter um idoso a interpretar uma personagem jovem ou vice-versa. Para um actor, esse baralhar é um desafio cativante enquanto intérprete. Mas para o público, é também um desafio positivo.
Assim, idealmente, um actor deve ser escolhido em função das suas características individuais e do rumo que o encenador quer imprimir à obra. Podendo ou não gostar-se da escolha ou seu resultado final, nada houve de errado na opção de ter apenas homens no elenco de "A Casa de Bernarda Alba", na Comuna. Penso que nenhuma mulher se terá sido discriminada por isso. Foi uma escolha fundamentalmente artística. Não foi por falta de mulheres disponíveis, como por exemplo uma encenação numa prisão masculina. Nem se pode confundir com elencos há 400 anos, quando as mulheres não podiam pisar os palcos de teatro. Nesse contexto, uma mulher que desejasse ser atriz poderia sentir-se legitimamente alvo de discriminação, e reclamar contra os tabus e normas sociais vigentes.
O contexto é relevante. Ter um actor branco de cara pintada a representar uma personagem negra pode ser ofensivo, considerando a história racista do 𝘮𝘪𝘯𝘴𝘵𝘳𝘦𝘭𝘴𝘺, a descriminação histórica contra actores negros, etc. Hoje, no contexto português, seria uma escolha desnecessária (temos excelentes actores de pele negra) e a ser tomada merceria escrutínio. Poderia até ter legitimidade se feita por opção artística: por exemplo, a personagem de Robert Downey Jr em Tropical Thunder. Mas seria sempre inapropriada se fruto de discriminação da produção ou discriminação estrutural.
É pois legítimo que um actor possa interpretar qualquer papel. Mas um espectáculo é não só um evento artístico. Em maior ou menor grau, é um evento político. A escolha do tema, da encenação, dos actores, sua interpretação, tudo isso tem um cariz político. Escolhas muitas vezes a montante da apresentação do espectáculo. Como dito acima, temos excelentes actores negros em Portugal. Mas poderão ser considerados apenas para representar "personagens negras" ou quando se pretende retratar "questões negras". A revolta seria legítima se, quando finalmente surge um papel de um "personagem negro", fosse escolhido um actor branco para o interpretar.
Um actor – ou qualquer um envolvido numa obra colectiva como uma peça de teatro ou filme – não deve demitir-se inteiramente da responsabilidade política pela obra. Não significa que seja inteiramente livre. O actor profissional tem de trabalhar para viver. Mas um operário de uma fábrica de armamento pode sabotar as bombas que ajuda a produzir. Sendo escolhido para uma peça, o actor deve dar o seu melhor. Mas tão pouco deve perder de vista o contexto político mais amplo da obra em que estará envolvido.
Não tenho receitas. Falei até agora em generalidades e na importância do contexto: um actor deve poder fazer qualquer papel, mas não se pode descartar o contexto e cariz político de um espectáculo artístico. Para ser claro, não estou a apontar dedos a André Patrício, que merece a minha solidariedade, enquanto actor vítima de agressão em palco, que viu o seu trabalho limitado por uma direcção teatral frouxa. Se alguém merece nota negativa neste processo, diria ser esta direcção.
Um personagem transexual deve poder ser interpretado por qualquer actor, mas não podemos ignorar as queixas de discriminação por parte de transexuais, se sentem que nem para interpretar um transexual são escolhidos transexuais.
Não descarto inteiramente a invasão de palco como forma de protesto, mas não creio que tenha sido neste caso a escolha indicada. O protesto foi falado, mas não creio que resultados tenham sido positivos para a causa mais geral de integração dos transexuais nas artes e na sociedade como um todo.
Deixo agora então parte da entrevista do Redmayne (Guardian, 27 Janeiro 2023), a propósito do seu papel no filme «The Danish Girl», como Lili Elbe, umas das primeiras pessoas que fez cirurgia genital afirmativa de gênero:
"𝘈𝘭𝘨𝘶𝘯𝘴 𝘢𝘯𝘰𝘴 𝘢𝘵𝘳𝘢́𝘴, 𝘧𝘪𝘻 𝘶𝘮 𝘸𝘰𝘳𝘬𝘴𝘩𝘰𝘱 𝘤𝘰𝘮 𝘢𝘤𝘵𝘰𝘳𝘦𝘴 𝘵𝘳𝘢𝘯𝘴 𝘯𝘢 𝘊𝘦𝘯𝘵𝘳𝘢𝘭 𝘚𝘤𝘩𝘰𝘰𝘭 𝘰𝘧 𝘚𝘱𝘦𝘦𝘤𝘩 𝘢𝘯𝘥 𝘋𝘳𝘢𝘮𝘢. 𝘔𝘶𝘪𝘵𝘰𝘴 𝘮𝘦 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘳𝘳𝘰𝘨𝘢𝘳𝘢𝘮 𝘴𝘰𝘣𝘳𝘦 𝘢 𝘮𝘪𝘯𝘩𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘭𝘩𝘢 𝘥𝘦 𝘧𝘢𝘻𝘦𝘳 𝘛𝘩𝘦 𝘋𝘢𝘯𝘪𝘴𝘩 𝘎𝘪𝘳𝘭, 𝘦 𝘭𝘦𝘮𝘣𝘳𝘢𝘳𝘢𝘮 𝘲𝘶𝘦 𝘮𝘶𝘪𝘵𝘰𝘴 𝘢𝘵𝘰𝘳𝘦𝘴 𝘵𝘳𝘢𝘯𝘴 𝘯𝘢̃𝘰 𝘧𝘳𝘦𝘲𝘶𝘦𝘯𝘵𝘢𝘮 𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘭𝘢 𝘥𝘦 𝘵𝘦𝘢𝘵𝘳𝘰 𝘱𝘰𝘳𝘲𝘶𝘦 𝘯𝘢̃𝘰 𝘷𝘦̂𝘦𝘮 𝘯𝘪𝘴𝘴𝘰 𝘶𝘮𝘢 𝘰𝘱𝘰𝘳𝘵𝘶𝘯𝘪𝘥𝘢𝘥𝘦. 𝘈 𝘮𝘦𝘯𝘰𝘴 𝘲𝘶𝘦 𝘩𝘢𝘫𝘢𝘮 𝘱𝘢𝘱𝘦́𝘪𝘴 𝘲𝘶𝘦 𝘱𝘦𝘯𝘴𝘢𝘴 𝘴𝘦𝘳 𝘱𝘰𝘴𝘴𝘪́𝘷𝘦𝘭 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘳𝘱𝘳𝘦𝘵𝘢𝘳, 𝘱𝘰𝘳 𝘲𝘶𝘦 𝘰 𝘧𝘢𝘳𝘪𝘢𝘴 𝘵𝘶? (...)
𝘊𝘳𝘦𝘪𝘰 𝘲𝘶𝘦 𝘵𝘰𝘥𝘰𝘴 [𝘢𝘤𝘵𝘰𝘳𝘦𝘴] 𝘲𝘶𝘦𝘳𝘦𝘮 𝘴𝘦𝘳 𝘤𝘢𝘱𝘢𝘻𝘦𝘴 𝘥𝘦 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘳𝘱𝘳𝘦𝘵𝘢𝘳 𝘵𝘰𝘥𝘰𝘴 𝘰𝘴 𝘱𝘢𝘱𝘦́𝘪𝘴. 𝘌́ 𝘤𝘰𝘮 𝘪𝘴𝘴𝘰 𝘲𝘶𝘦 𝘴𝘰𝘯𝘩𝘢𝘮𝘰𝘴 𝘤𝘰𝘮𝘰 𝘢𝘵𝘰𝘳𝘦𝘴, 𝘦 𝘥𝘦𝘷𝘦𝘳𝘪𝘢𝘮𝘰𝘴 𝘧𝘢𝘻𝘦𝘳. 𝘕𝘪𝘯𝘨𝘶𝘦́𝘮 𝘲𝘶𝘦𝘳 𝘴𝘦𝘳 𝘭𝘪𝘮𝘪𝘵𝘢𝘥𝘰 𝘱𝘦𝘭𝘰 𝘴𝘦𝘶 𝘨𝘦̂𝘯𝘦𝘳𝘰 𝘰𝘶 𝘴𝘦𝘹𝘶𝘢𝘭𝘪𝘥𝘢𝘥𝘦, 𝘮𝘢𝘴, 𝘩𝘪𝘴𝘵𝘰𝘳𝘪𝘤𝘢𝘮𝘦𝘯𝘵𝘦, 𝘦𝘴𝘴𝘢𝘴 𝘤𝘰𝘮𝘶𝘯𝘪𝘥𝘢𝘥𝘦𝘴 𝘯𝘢̃𝘰 𝘴𝘦 𝘴𝘦𝘯𝘵𝘢𝘳𝘢𝘮 𝘢̀ 𝘮𝘦𝘴𝘢. 𝘈𝘵𝘦́ 𝘲𝘶𝘦 𝘩𝘢𝘫𝘢 𝘶𝘮 𝘯𝘪𝘷𝘦𝘭𝘢𝘮𝘦𝘯𝘵𝘰, 𝘩𝘢́ 𝘤𝘦𝘳𝘵𝘰𝘴 𝘱𝘢𝘱𝘦́𝘪𝘴 𝘲𝘶𝘦 𝘦𝘶 𝘯𝘢̃𝘰 𝘵𝘰𝘤𝘢𝘳𝘪𝘢."
Em 2021, Redmayne disse "𝘧𝘪𝘻 𝘰 𝘧𝘪𝘭𝘮𝘦 𝘤𝘰𝘮 𝘢𝘴 𝘮𝘦𝘭𝘩𝘰𝘳𝘦𝘴 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘯𝘤̧𝘰̃𝘦𝘴, 𝘮𝘢𝘴 𝘱𝘦𝘯𝘴𝘰 𝘲𝘶𝘦 𝘧𝘰𝘪 𝘶𝘮 𝘦𝘳𝘳𝘰". Hoje, diz que não aceitará papéis que deveriam ir para actores trans.

Nenhum comentário: