quinta-feira, setembro 16, 2004

Entrevista a Sam Webb - Presidente Nacional do PCEUA

«Nós não subestimamos a ameaça de direita que Bush representa para o nosso país e para o mundo. Caso Bush seja derrotado, teremos um terreno político distinto a nível interno e externo para continuar as lutas pela paz e a igualdade, por justiça económica e social». As palavras são de Sam Webb, Presidente Nacional do Partido Comunista dos EUA (PCEUA), que em entrevista concedida ao Avante! a 18 de Agosto, em Nova Iorque, analisa a importância das eleições presidenciais norte-americanas de 2 de Novembro próximo, e dá conta da crescente mobilização das forças de esquerda e progressistas pela democracia e pela paz.

As eleições presidenciais de Novembro próximo são o tema político dominante nos EUA. Como é que o PCEUA encara esta disputa eleitoral e os dois candidatos à presidência?

Nós vemos estas eleições como provavelmente as mais importantes que enfrentámos na nossa era. Até os camaradas mais velhos não se recordam de eleições que tivessem implicações políticas mais profundos tanto no futuro do país como do mundo.
Não preciso de convencer os leitores do Avante! que se Bush for reeleito, acelerará o processo de remodelação da vida política nos EUA e no mundo em benefício das companhias transnacionais mais reaccionárias. Este é claramente o objectivo desta administração. Bush usa a ‘Guerra ao Terror’ como cobertura para implementar o programa do sector mais extremista da nossa classe dominante.
O nosso objectivo é juntarmo-nos a milhões de pessoas neste país para derrotarmos o que chamamos a extrema direita representada por Bush. Esta é a nossa prioridade agora, com as restantes lutas subordinadas a este objectivo.
Nós não subestimamos a ameaça de direita que Bush representa para o nosso país e para o mundo. Caso Bush seja derrotado, teremos um terreno político distinto a nível interno e externo para continuar as lutas pela paz e a igualdade, por justiça económica e social. A derrota de Bush seria o repúdio das suas políticas, em particular a sua estratégia no Iraque.

Há quem diga que as posições do candidato democrata, John Kerry, sobre o Iraque não são muito diferentes das de Bush...

É verdade, mas importa ter presente que a derrota de Bush porá em andamento uma dinâmica política diferente relativamente ao Iraque e a outros assuntos, que uma administração Kerry não poderá ignorar. Se Bush for derrotado, a administração Kerry terá de formular uma outra política.
Kerry não é um candidato da esquerda ou do movimento progressista. Ele representa um sector da nossa classe dominante, tal como algumas das aspirações mais democráticas do nosso povo.
A esquerda e os progressistas não podem rotular Kerry com ligeireza. Há uma tendência para escrutinar cada frase de Kerry e concluir que ele não corresponde ao candidato ideal da esquerda. Mas ele não é um candidato da esquerda.
Existem contudo diferenças entre os candidatos e temos que frisar o que distingue a dupla democrata Kerry-Edwards da dupla republica Bush-Cheney. Ambas são apoiantes de corporações transnacionais e do capitalismo, no entanto não podemos desenvolver tácticas políticas nestas eleições limitando-nos a este nível de análise. Temos de considerar outros níveis.

O que é que distingue os dois candidatos?

Existem diferenças substanciais entre eles.
Por exemplo, Bush quer privatizar a Segurança Social, Kerry quer preservá-la.
Bush quer entregar o sistema federal de apoio médico [Medicare] às corporações na área da saúde, Kerry quer preservá-la.
Bush quer eliminar o direito ao aborto, Kerry quer preservar o direito de escolha da mulher.
O mesmo sucede quanto ao programa «Acção Afirmativa», que gera alguma igualdade para negros, latinos, asiáticos, nativos e outros povos racialmente oprimidos, a que Bush quer pôr cobro, enquanto Kerry se propõe preservá-lo e provavelmente até desenvolvê-lo.
Em relação aos direitos dos trabalhadores e ao direito de organizar sindicatos, Bush quer eliminar quaisquer protecções e direitos que os trabalhadores têm para se organizarem em colectivos com peso na mesa de negociações. Kerry não só protegeria os direitos existentes como provavelmente permitiria a criação de condições mais favoráveis à organização do movimento dos trabalhadores.
Bush quer eliminar o direito ao salário mínimo, enquanto Kerry quer um aumento do salário mínimo, que actualmente é de 5.50 dólares, para 7 dólares. Seria ainda um salário pobre, mas uma diferença importante para milhões de trabalhadores, pois é nesta faixa laboral, ganhando salário mínimo, que tem ocorrido a expansão de emprego. Mesmo em questões de política externa, como a invasão e ocupação do Iraque, as diferenças são substanciais. Kerry disse recentemente que quer explorar uma estratégia de retirada das tropas do Iraque. Ele defende uma diplomacia multilateral para resolver a situação iraquiana. Noutro nível, ele afirma-se contra ataques preventivos como principal método de acção, contra o uso de armas nucleares como armas de primeiro recurso, posições que a administração Bush promove. Kerry fala ainda da necessidade de um programa de testes nucleares, de acordos internacionais em temas como o ambiente. De forma que mesmo ao nível internacional existem diferenças substanciais. A nossa posição é não ofuscar estas diferenças.
Em 2000, Bush tentou criar a ilusão de que as suas políticas representava um conservadorismo compassivo. Resultou não ser esse o caso. Mas à medida que nos aproximamos das eleições, Bush irá tentar limar as pontas mais agudas das suas políticas. Cabe-nos a nós desmascará-lo e demonstrar que Kerry, embora não seja o representante da esquerda e não partilhe muitas das posições que gostaríamos, difere de Bush de forma real e substancial, com potenciais consequências concretas para a população dos EUA e do mundo. Seria um erro não reconhecer essas diferenças. Por vezes existe hesitação [em apoiar Kerry], porque não queremos ser atacados pela esquerda. Mas eu argumento que o mais importante agora é mobilizar o eleitorado para derrotar Bush.

Como evoluiu a opinião pública para expressar oposição às políticas do governo desde o 11 de Setembro?

Tem havido uma mudança monumental desde os meses imediatamente a seguir ao 11 de Setembro, durante os quais as pessoas hesitavam em expressar opiniões que desafiassem a administração Bush. Nessa altura, grande parte do país apoiou Bush e as suas políticas. Os cépticos ou opositores hesitavam em expressar-se publicamente. Os que o fizeram foram acusados de falta de patriotismo e traição. Mas isso mudou radicalmente, em resultado de dois factores. Primeiro, as manifestações pela paz nos EUA e no mundo, incluindo Portugal, que abriram o espaço democrático e deram confiança de que outros partilhavam a mesma opinião. O efeito fez-se sentir sobre os outros movimentos democráticos no nosso país e deu nova coragem aos opositores de Bush, não só na questão de paz, como em questões domésticas, como o Patriot Act, os direitos dos trabalhadores, os direitos da mulher, dos povos oprimidos. O outro factor importante foi o desfazer das ilusões sobre a invasão e subsequente ocupação do Iraque. Bush racionalizou a guerra fazendo uso da ameaça de armas de destruição massiva e de uma conexão entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda. Nenhum destes argumentos se revelou verdadeiro. E à medida que se desenvolveu a ocupação, viu-se que a realidade era muito distinta da Bush havia previsto. Ele disse que nós havíamos sido libertadores e que depois da guerra um novo governo se imporia. Mas tal também não ocorreu. Morreram mais soldados americanos desde o fim declarado da guerra, do que durante a invasão.
Estes factores afectaram não só a esquerda, mas vastos sectores da opinião pública, que olha agora para a administração Bush de forma mais crítica, e tal reflecte-se nas sondagens pela queda de apoio a Bush em muitas questões diferentes. Para o nosso partido, e outras forças de esquerda, abriu-se um espaço de intervenção, em particular na perspectiva de derrotar Bush nas eleições presidenciais.
Há um ano teria dito que não poderíamos ganhar as eleições. Mas agora creio que será uma luta renhida. Não creio que vá ser uma vitória esmagadora. Irá ser uma vitória por uma margem pequena para um ou outro lado. Mas uma vitória é possível. Há um ano não teria dito o mesmo. Há dois anos, a Casa Branca planeavam a coroação. Mas agora está preocupada.

Como é a participação do partido no período eleitoral?

Para o nosso partido, o trabalho político é difícil. Mas não quero sublinhar as dificuldades. Quando viajo pelo estrangeiro, as pessoas pensam que é impossível lutar nos EUA. Tal não é o caso. No estrangeiro, existe a tendência para subestimar os sentimentos e movimentos democráticos nos EUA. Existe esta noção de domínio dos monopólios e corporações transnacionais, onde a possibilidade de reformas e de transformação social são limitadas. Mas não sou dessa opinião. Poderia citar exemplos históricos de importantes movimentos sociais com tremendas conquistas sociais. E creio que estamos a caminhar nessa direcção. Não num futuro imediato. Creio que poderemos vencer as eleições e depois disso podemos ganhar importantes vitórias políticas.
Mas olhando um pouco mais à frente, vejo a formação de uma frente popular, liderada pelo movimento laboral, composta de forças políticas diversas que poderá conquistar dentro de alguns anos importantes conquistas económicas e sociais.
Nós trabalhamos nestas condições, e o partido participa em grande número de movimentos sociais. Mesmo durante a guerra fria, verificava-se isso. Não era uniforme, havia cláusulas anticomunistas na constituição de vários sindicatos. Esse foi um período difícil para nós. Mesmo nessa altura, o partido e os seus membros participaram activamente nos movimentos sociais, especialmente ao nível da base. E estes movimentos, como os sindicatos, têm estruturas independentes e instrumentos próprios para mobilizar a população, registar eleitores, difundir informação, etc. Muitos destes movimentos, como nós, não têm ilusões sobre o Partido Democrata, mas têm de lidar com a realidade política.
A nossa realidade eleitoral é muito diferente, com as estruturas políticas dominadas pelos partidos Democrata e Republicano. Não temos um terceiro partido político de peso. Não creio que vá ser sempre assim. Na nossa óptica, existe necessidade de um terceiro partido independente dos partidos do capitalismo, tendo como elementos centrais o movimento dos trabalhadores, das minorias oprimidas e das mulheres, juntamente com outras forças sociais. Esse é o nosso objectivo a longo prazo. Mas agora temos de lidar com a realidade política do momento.
Existe um desejo crescente de formação de um terceiro partido, mas isso não se vai realizar num futuro próximo. O movimento laboral tem de dedicar o seu peso e recursos nessa direcção, pois sem ele a possibilidade de construção de um terceiro partido neste país é limitada. Para que um terceiro partido possa desafiar os partidos Democrata e Republicano precisa do poder que o movimento laboral representa.

Qual tem sido o papel do movimento sindical na oposição à invasão do Iraque e na campanha eleitoral?

Os sindicatos tem um papel decisivo, têm a força política e organizadora para alcançar milhões de eleitores. Nenhum outro movimento social tem os recursos e a força equivalentes. O objectivo do movimento laboral é derrotar Bush e os republicanos no Senado e Casa de Representantes, onde detêm a maioria.
O movimento sindical está diferente. Em 1995, elegeu-se uma nova direcção sindical. Não é uma liderança da esquerda, mas deu maior ênfase à organização dos trabalhadores, maior actividade na arena política e à criação de coligações com outras forças sociais. Dou um exemplo de uma alteração subtil, que para os leitores do Avante! poderá parecer pequena, mas que para nós criou novas oportunidades. Na questão do Iraque, a liderança de Sweeny [líder da AFL-CIO, a mais importante central sindical] não se declarou contra a guerra, mas deu oportunidade às estruturas laborais locais e regionais de tomarem posições próprias, de oposição à guerra. Antes tal nunca teria sido permitido. Isto abre novos espaço para os comunistas e forças da esquerda levarem os sindicatos locais a participar nas coligações contra a guerra. E mesmo sindicatos grandes têm vindo a opor-se à guerra e à ocupação do Iraque, como o Sindicato Internacional de Empregados de Serviços [Service Employee International Union], com mais de um milhão de membros, que na sua convenção recente tomou uma posição forte contra a ocupação.

Qual é a posição do partido relativamente à estratégia que os EUA deve seguir no Iraque?

A nossa posição é a de que a ocupação tem de terminar. A nossa presença no Iraque não ajuda a estabilizar o país nem assegura o seu futuro democrático. Nada de positivo vai resultar da ocupação. A ideia de que os EUA estão a tentar estabelecer um governo democrático é pura demagogia. Nunca foi esse o objectivo, e não o será no futuro. Queremos dominar aquela zona do mundo. O objectivo da administração Bush ao invadir o Iraque foi o de ganhar uma base de operações e um aliado numa região estratégica para o sistema capitalista devido à produção de petróleo. Em conjunto com a retirada dos EUA, as Nações Unidas deviam enviar uma força de manutenção de paz para permitir a transição, e o Iraque precisa de ajuda económica na reconstrução. Não nos podemos esquecer que não foi só a invasão que destruiu o Iraque. Antes disso, houve dez anos de sanções. E antes disso houve a primeira guerra do Golfo. E antes disso, a guerra entre o Irão e o Iraque. Este povo foi vitimado de formas diversas e deseja a estabilidade política e económica. E a ocupação não os conduz nessa direcção.

Como é que a lei PATRIOT ACT e outros assaltos aos direito cívicos tem afectado o partido e a capacidade de organização e expressão da esquerda?

Essas leis têm desgastado os direitos democráticos do povo americano em geral. Para os que são activistas, representa problemas. O FBI está a molestar pessoas, visitando-as nos seus domicílios, fazendo perguntas sobre a sua participação na organização de manifestações. O partido sentiu um pouco, mas são as pessoas oriundas do Médio Oriente que têm sofrido mais: detenções ilegais, emprisionamento sem acesso a apelo legal.
O outro problema é que administração Bush quer renovar o PATRIOR ACT, que vai expirar em breve. Após os ataques de 11 de Setembro e o clima de histeria que se seguiu, o povo americano estava disposto a sofrer medidas draconianas para garantir maior segurança, mas agora estão a dizer: «Alto! Fomos demasiado longe. Onde é que isto nos está a levar?»
Municipalidades por todo o país aprovam medidas contra o PATRIOT ACT. Juntamente com as medidas legais houve a criação de novas estruturas, como o Departamento de Segurança do Território [Homeland Security].
Alguns dizem que estamos a caminho do fascismo. Eu não partilho dessa visão. Tem havido uma redução dos direitos constitucionais e democráticos, mas não estamos numa era fascista. Essa visão é um erro político, pois exige uma forma de luta diferente. Ainda existem aberturas, espaço para protestos e manifestações. E temos de utilizar estas formas para combater a tentativa de limitar os nossos direitos constitucionais e democráticos.

Referiu antes a importância que as manifestações contra guerra pelo mundo fora tiveram nos EUA, em particular em fortalecer a expressão de oposição nos EUA. Esta é uma mensagem muito positiva, pois implica que as pessoas no estrangeiro têm o poder de influenciar o coração do império, senão influenciando o governo per se, então influenciando a expressão de oposição doméstica...

É um forma de dialéctica. O facto dos protestos de 15 de Fevereiro 2003 terem tido um carácter global teve um impacto na opinião pública nos EUA, deu nova confiança aos que já estavam no movimento pela paz. E dada a natureza da administração Bush, para a conter e reduzir o seu poder é necessário um movimento global. E o partido contribui para este movimento. Neste momento, a melhor forma de expressar solidariedade com os povos do mundo é contribuir para derrotar Bush.
Este é um período interessante. Sentimos que podemos ser parte de um movimento mais largo, que pode alcançar vitórias contra esta administração. E temos também confiança que podemos fortalecer o partido. Nós passámos por um período difícil após o desmoronamento da União Soviética, mas estamos agora num período de reconstrução, que podemos acelerar. Talvez não seja surpreendente que, neste período difícil, os nossos e até a nossa liderança apreciem melhor o papel especial e único que o partido tem para lutas mais amplas. Não que o partido seja decisivo, mas oferece uma contribuição política e organizadora especial, uma análise que é apreciada pelos movimentos nos quais participamos.
Nesta altura estamos também a repensar a nossa visão e conceito de socialismo. Estou a preparar um documento que será apresentado ao partido para discussão. Não irá resolver todas as questões. Não tenho capacidade para tanto. Mas servirá para estimular a discussão no partido, e também com outras forças da esquerda. Tomará em conta os desafios que o movimento socialista enfrenta, tal como as experiências do século XX, boas e más.
Existe um interesse renovado pelo socialismo. Após o desmoronar da União Soviética, as ideias do socialismo foram postas de parte por muitas pessoas, incluindo pessoas de esquerda. Mesmo no nosso partido, alguns perdem a confiança no socialismo como projecto político viável. No entanto, num espaço historicamente curto, as pessoas estão a considerar o socialismo numa perspectiva renovada. Olham para as corporações transnacionais, procuram alternativas, e gradualmente começam a considerar de novo o socialismo como alternativa ao capitalismo. Eu creio que é a única alternativa. O movimento da esquerda mais amplo não chegou a essa conclusão, mas pelo menos agora existe uma faixa da esquerda que encara o socialismo sem preconceitos.
Quero terminar dizendo que temos grande respeito pelo PCP. Estou no movimento comunista há mais de 30 anos e desde os primeiros dias que entrei para o partido, e isto faz parte da cultura do partido, que sinto um grande respeito pelo PCP, pela sua liderança, e pela luta heróica dos seus membros e dos portugueses. Continuamos a olhar para o PCP como uma fonte de inspiração política e ideológica.

Artigo publicado no Avante nº 1607