terça-feira, setembro 30, 2008

Morra o Neoliberalismo! Pim!

A actual crise financeira está a atingir proporções e significado verdadeiramente histórico. Os dominós começaram a cair de tal forma que os grandes porta-vozes do neoliberalismo a nível mundial se viram obrigados a engolir a pílula vermelha e reconhecer que o mercado capitalista verdadeiramente livre, sem regulação e intervenção estatal, é um mundo de fantasia.

Como escreveu Samir Amin (parafraseando), enquanto a maior parte dos cientistas observa o mundo e infer modelos, os economistas (neste caso os políticos neo-liberais) inventam modelos (necessariamente simplificações) e impõem-nas sobre o mundo. Claro que na verdade, os países imperialistas têm pregado o mercado livre aos quatro cantos no mundo, sem no entanto deixarem de domesticamente subsidiar e proteger alguns dos seus sectores produtivos. Vejam-se o caso dos subsídios agrícolas, na EU e EUA. Nem é a primeira vez que os EUA se vê forçado a salvar sectores financeiros. Recordem-se do colapso das contas de poupança (Saving & Loans) no final dos anos 80, durante o mandato do Bush pai.

Mas o nível de endividamento familiar no mundo ocidental e as dificuldades económicas sentidas pela maior parte da classe média na EU e EUA tornam a contradição entre o afiançamento das instituições bancárias pelo Estado e os cortes nos sectores orçamentais mais sentidos pelas populações (saúde, educação, habitação), em nome de um estado pequeno e pouco interventivo no mercado, ainda mais evidente e escandaloso.

E note-se que na maior parte das intervenções não se tratam de nacionalizações, como refere Marcelo Rebelo de Sousa. Os EUA não estão a tomar posse. Têm vindo a disponibilizar crédito com muito poucas garantias e grande risco. Nem acho muito correcto o termo quando usado nas acções da Grã-Bretanha. Por exemplo, a Associated Press noticía que o governo da GB nacionalizou a Bradford & Bingley, mas a leitura do artigo revela que o que fez foi assumir responsabilidade por 50 mil milhões de libras em empréstimos e hipotecas. Ora, não me parece que tal constitua uma nacionalização, isto é, o assumir poder executivo sobre as decisões do banco. Trata-se apenas de assumir a sua dívida. Esta sim é que foi nacionalizada, com quem diz, partilhada com todos os contribuintes. Curioso também nesta intervenção do governo da GB foi que pagou 18 mil milhões de libras para facilitar a venda do sector de depósitos da Bradford & Bingley ao Banco Santander.

Enquanto umas cartas caem, há alguns gatos fartos a limpar a mesa, e vai aumentando a concentração. Caso semelhante foi a cooperação de um departamento federal dos EUA (Federal Deposit Insurance Corp.), em facilitar a absorção parcial da Wachovia Corp, umas das maiores instituições bancárias dos EUA, mas em crise de dívida no sector de crédito imobiliário, pelo Citigroup. A compra da Bear Stearns pela JP Morgan Chase em Março. Outra alteração significativa no cenário financeiro estadunidense foi a aceitação pela Reserva Federal do pedido da Goldaman Sachs e da Morgan Stanley — os dois maiores bancos de investimento do país — para se converterem em bancos comerciais, e portanto aceitarem depósitos, como podem agora ter acesso aos programas de emergência do Fed para bancos comerciais. (ver) Ambos os bancos estavam sob ameaça após a falência do banco de investimento Lehman Brothers e a venda forçada do banco de investimento Merrill Lynch ao Bank of America.

Ontem, houve um desfeche inesperado na Casa de Representantes dos EUA, com a reprovação do plano Bush/Paulson de o Governo Federal disponibilizar 700 mil milhões de dólares para socorrer diversas instituições financeiras. Bush foi à televisão, a semana passada, para dar o devido tom de urgência e absoluta necessidade à medida (vejam esta comparação entre esse discurso e aquele que Bush fez apelando à necessidade de invadir o Iraque em Março de 2003, feito no programa de sátira política The Daily Show; ambos têm lugar no mesmo cenário da casa branca, e fazem recurso a argumentos semelhantes). McCain contribuiu para o tom de pânico e interrompeu a sua campanha, ameaçando não participar no primeiro debate com Obama (o que veio, porém a fazer). Mas a ida de McCain a Washington para dar o seu contributo acabou por dar torto. O acordo entre os líderes democrátas e republicanos no Congresso e a Casa Branca começou a dar para o torto assim que ele chegou, embora depois durante o fim de semana se tenha chegado a um acordo. Mas durante a semana houve mobilização popular contra a medida, algumas manifestações de rua, e muita carta escrita aos congressistas protestando contra tanto dinheiro dado às instituições financeiras, quando pouco ou nada foi disponibilizado para ajudar as famílias que estão a ter que perder as suas casas porque não podem pagar as hipotecas. Recordo que cada membro da Casa de Representantes é eleito cada dois anos. Isto é, aproximam-se não só as badaladas eleições presidenciais, mas também a re-eleição dos membros da Casa chamados a votar sobre uma questão sobre a qual poderá pesar o voto dos eleitores. Quer tenha sido pela pressão dos eleitores, quer tenha sido por convicção neoliberal, houve resistência à medida.

Entre os comentários mais reveladores (e cómicos) da convicção neoliberal, foram as declarações
do Senador Republicano do Kentucky Jim Bunning:
Não podemos fazer desaparecer as más hipotecas. Não podemos fazer desaparecer as perdas que as nossas instituições financeiras estão a enfrentar. Alguém tem de ficar a perder. Ou são as pessoas que fizeram as más decisões que acarretam com as consequências das suas acções, ou então partilhamos essa dor com outros. E é exactamente isso que a proposta do Secretário [do Tesouro, Paulson] faz: retirar dor a Wall Street e dividi-la entre os contribuintes. O plano Paulson não pode ajudar os que estão em dificuldades em pagar as suas hipotecas. O plano Paulson vai gastar 700 mil milhões de dólares dos contribuintes para elevar e limpar as folhas de contabilidade de Wall Street. Este massivo afiançamento não é a solução. É socialismo financeiro [sic], e não é Americano.
Mas no final do fim de semana parecia haver consenso entre os líderes, e houve votação na Casa de Representantes. O fim do período de voto foi sendo adiado pela líder da Casa, a democrata Nancy Pelosi, porque tudo indicava que a proposta ia ser chumbada, como veio a acontecer (228 contra, 205 a favor). Significativo na votação é que numa câmara onde os democratas têm uma pequena maioria, a proposta foi chumbada em grande medida devido ao voto dos Republicanos (133 contra, 65 a favor), pois uma maioria de democratas aprovou a medida (95 contra, 140 a favor). Isto é, Bush (e o candidato McCain) nem conseguiram mobilizar a sua base na Casa; e os Democratas demonstram mais uma vez ter uma falta de imaginação e espinha dorsal tremenda.

Depois do resultado surpresa terá ficado tudo a pensar: e agora o que fazemos? As bolsas de valores porém não hesitaram em responder: o índice industrial Dow Jones caiu 777 pontos (a maior queda na sua história de 112 anos), o índice S&P500 caíu 8.8% (a maior queda desde a Segunda-feira Negra de 1987), enquanto o índice compósito Nasdaq caiu 9.1%. (ver)

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