quinta-feira, novembro 13, 2008

Efeito Obama?

A eleição de Barack Obama para a presidência constitui sem dúvida um marco nas relações entre etnias nos EUA, enquanto primeiro presidente com origem Aricana por parte do pai (do Quénia, em particular, onde ainda tem família, como uma reportagem desnecessária da RTP fez questão de documentar). Dada a história de segregação neste país, onde só em 1964 foi aprovado o Acto de Direitos Civis consagrado efectivamente o direito de voto aos Africano-americanos, e a integração do ensino e dos locais de trabalho, é realmente significativo. Mas não se exagere.

Primeiro, embora a posição de presidente, pelo carácter nacional, ser distinta, há muitos anos que Africano-americanos são eleitos nos EUA para câmaras, assembleias estaduais, e como representantes de estados ao Congresso. Já ocuparam também lugares do governo, caso de Colin Powell e Condelezza Rice, cujas prestações lamentáveis não retira o facto de serem Africano-americanos.

Segundo, Obama nunca fez da sua origem étnica uma questão eleitoral, nem a sua campanha encontra traços evidentes da agenda das organizações Africano-americanas, como foi o caso das campanhas, por exemplo, de Jesse Jackson e Al Sharpton. Pelo contrário, Obama fez por tudo para não ser o "candidato negro", chegando ao ponto de distanciar-se de Jesse Jackson, que não foi solicitado a prestar publicamente o seu apoio nos eventos da campanha de Obama, ou do seu pastor, acusado de radical. Foi uma opção política. Quis evitar o rótulo de "candidato negro" para ser o candidato da mudança para todos. Consegui-o por mérito próprio, do contexto social e económico dos EUA, da desastrosa experiência de Bush na casa branca, e à conta de muito dinheiro investido na campanha. Houve até maior esforço por parte da máquina conservador em pintá-lo como muçulmano (um dos seus nomes é Hussein), ou associado a terroristas domésticos, ou, na fase final da campanha, como socialista por querer "redistribuir a riqueza". Tendo em conta o nível de desigualdade económica nos EUA querer equilibrar um pouco a riqueza nacional não é sinal de socialismo. É sinal de que não mentecapto. Qualquer economista de mercado com dois dedos de testa entende que não é possível haver consumo nacional se deixar de haver classe média, e sobrar apenas uma pequena faixa de muitíssimo ricos rodeados sobretudo de classe pobre-baixa e média-baixa.

O Público de hoje traz uma notícia onde se lê «França nomeia primeiro prefeito de origem africana e entra (sem o dizer) na era Obama - Governo francês diz que a decisão não foi impulsionada pelo "efeito Obama" e Nicolas Sarkozy considera importante "continuar por esta via"». Mas que raio é isso do "efeito Obama"? Eleger alguém de etnia africana? Suponho que seja um efeito que tem lugar no mundo ocidental, de origem europeia, pois em África, desde as descolonizações, há muito que elegem (ou sobem ao poder) Africanos. (Isto sem considerar que todos temos origem Africana.) Na América Latina não se fez tanto caso de Chávez ou Morales, com ancestrais ameríndios, terem sido eleitos presidentes da Venezuela e Bolívia. No Caribe já vários presidentes tiveram origem Africana.

Será o "efeito" só válido para o mundo euro-cêntrico? Que a eleição de Africanos na Europa esteja "atrasada" relativamente aos EUA e Caribe explica-se pela história das suas populações de origem Africana. A Europa, incluindo Portugal, comercializou e transportou escravos para aquelas regiões, durante centenas de anos, com enormes custos humanos. Mas os países europeus não transportavam os escravos para a Europa. Mantinha os Africanos sob a alçada colonial em África. Só recentemente se têm verificado significativos níveis de imigração de África para a Europa. É natural que os seus filhos ou netos, cidadãos europeus, sejam eleitos para cargos de governação. Em França, a selecção de futebol já inclui uma grande proporção de Africanos (do Magrebe e África sub-sahariana). Houve até alguma resistência por parte da França nacionalista, mas com jogadores como o Zidane quem olha para a cor da pele.

Resume-se o "efeito Obama" à cor da pele? Isso parece-me uma ofensa à inteligência política e outros méritos individuais do Obama, de Pierre N'Gahane–o primeiro prefeito de origem africana nomeado para a perfeitura de Alpes de Haute Provence, no Sudeste da França–e de qualquer outro candidato, ou mesmo qualquer pessoa.

«Os Contemporâneos» ilustraram o ridículo deste suposto efeito em Maio, antes da eleição de Obama, com a escolha pelo PSD do candidato Buraka Obama. (Obrigado Rapariga Vermelha pela referência:)


Um comentário:

André Levy disse...

Recebi por e-correio este comentário interessante:

A Europa, e Portugal em particular, trouxeram escravos africanos para a Europa desde muito cedo (ficou tristemente célebre o primeiro mercado de escravos em Lagos no séc. XV). Em Portugal foram empregues sobretudo nos serviços domésticos e nos trabalhos agrícolas do Alentejo e Madeira. No distrito de Setúbal há uma aldeia onde, ainda não há muito tempo, a maioria da população era visivelmente afro-descendente, e no distrito de Beja a vila de Garvão surge num adágio popular como «terra dos negros» (isto para não falar nos contingentes populacionais que chegaram de África nos tempos romanos e islâmicos, pouco significativos, ou ainda dos que foram chegando nos séculos XIX e XX, até 1974).

Claro que nunca tiveram representação política e visibilidade pública (com muito raras excepções), então e mesmo depois da revolução democrática, por racismo. E se esses grupos têm tido mais representatividade ultimamente, naturalmente por causa da imigração, democratização e pelas razões que apontas, a verdade é que tal tem acontecido só muito depois do continente americano de um modo geral (mesmo em países onde os afro-descendentes não são maioritários). É por isso que não posso deixar de discordar contigo quanto ao "efeito Obama". Ele existe na Europa, sim, mas com um propósito muito claro (estimulado pelo Estado e pela comunicação social): potenciar a integração individual das elites emergentes afro-descendentes directamente num sistema que é tipicamente pós-colonial e racista, evitando simultaneamente que cumpram totalmente as suas naturais e legítimas expectativas de emancipação colectiva. Tenta-se mostrar que tudo acontece por quase nada, numa conveniente política “fast”. É muito perverso mas previsível, parece-me.


Ao que respondi:
Agradeço-te os apontamentos muito interessantes sobre os escravos em Portugal, que eu desconhecia de todo (e também o emprego da expressão 'afro-descendente').

Se bem compreendi a tua posição sobre o "efeito Obama", achas que a eleição de afro-descendentes não é fruto simplesmente do mérito dos indivíduos em causa, mas que há uma procura por parte do sistema de, por um lado, integrar as elites étnicas que vão surgindo (isto é alargar a representação da classe capitalista) e lavar-se de percepções que seja discriminatório.

Eu até subscrevo essa ideia. Parte da minha irritação com a expressão deriva de estar associada ao Obama, tendo em conta o que escrevi sobre a sua candidatura, e a existência de outros eleitos afro-descendentes nos EUA. Claro que o presidente é mais importante, mas o Obama não é qualquer um. Se fosse um Bush negro, disléxico e ignorante, não teria ganho as primárias. É claro que ele teve o apoio de sectores das elites brancas nos EUA (incluindo os bem importantes bancos), mas custa-me a querer que tenham primeiro pensado "que bom que seria ter um candidato negro" e depois tenham encontrado o Obama. Depois dele ter dado nas vistas alguns sectores do Partido Democrata podem ter visto nele uma resposta à questão da integração das elites afro-descendentes (que no seio da economia dos EUA tem muito pouco peso nacional, terão peso em algumas regiões), mas (acho eu) primeiro terão notado o seu poder de oratória, e a resposta da convenção nacional em 2004. Não estou com isto a defender a sua plataforma, apenas a dizer que (contrariamente ao Bush) é uma pessoa com óbvio méritos individuais. Há que não esquecer também que a sua candidatura nas primárias foi um risco, para um jovem senador, e a confirmação da sua eleição tardou.

Em todo o caso, creio que a tendência que traçaste me parece correcta, à medida que minorias étnicas vão penetrando nas classes do sistema, é inevitável que subam a lugares de poder. Mas por serem representantes da sua classe social, e não da sua etnia (como também tentei argumentar no caso de Obama) a situação dos seus grupos étnicos não melhora necessariamente por causa da sua eleição.