segunda-feira, agosto 18, 2008

O Iraque existe?

O mais recente relatório do Gabinete do Congresso para o Orçamento dos EUA (Congressional Budget Office) estima que os EUA terão gasto desde o início da invasão do Iraque até ao final deste ano mais de $100 mil milhões de dólares em empresas privadas, como a Haliburton e Blackwater, um proporção maior do que em qualquer conflito anterior. O número de empregados destas empresas (alguns serão construtores, mas muitos serão agentes de segurança, ie mercenários), já excede o contingente das forças militares dos EUA, constituindo um segundo exercito privado de 180 mil pessoas. (ver)
Quando um estado emprega empresas privadas com tamanha magnitude, pondo o tema da transparência e isenção da atribuição dos contactos de parte, há que perguntar qual a hierarquia de comando? Como funciona? Não é de admirar casos como este, em que mercenários da Blackwater desarmaram soldados dos EUA sob ameaça de disparar sobre eles.

Quem de facto conduz a guerra, e no interesse de quem? O corpo executivo e os accionistas destas empresas terão interesses que poderão não ser convergentes nem mesmo com o governo de Bush. Podem ser constituídos por pessoas de diferentes países. Os contratados no terreno são seguramente de vários países, havendo inclusivamente portugueses no Iraque empregue por estas empresas. Mas não são os tugas que me preocupam, são os maluquinhos que estas empresas foram recrutar um pouco por todo o mundo que ganharam a sua experiência em conflitos violentos. Quem assume a responsabilidade pelas suas acções. O governo dos EUA já garantiu isenção jurídica no Iraque para as actividades destas empresas. Também não serão julgados nos EUA.

Recomendo um filme que sai este ano War Inc (já disponível por aí) de Joshua Seftel, em John Cusack representa um assassínio empregado por uma empresa privada chamada Tamerlane, cujo director é o vice-presidente. A empresa foi efectivamente contratada pelo governo para ocupar a república (fictícia) do Turaqistão. Porque de facto um país dar-se ao trabalho e sofre as represálias políticas de invadir um país, se pode simplesmente contratar um empresa para o fazer. Além do mais, a Tamerlane não só pode ocupar militarmente um país como o reconstrói ao modelo ocidental, e toma passos para gerar novos conflitos e manter a roda de guerra-reconstrução sempre em andamento.

Uma excelente sátira ficcional, só excedida pela ironia das afirmação de George Bush e Condeleeza Rice a propósito da entrada da Rússia no território da Geórgia, após esta ter invadido a Ossétia do Sul. Disse Bush:
«A Rússia invadiu um país vizinho soberano e ameaça um governo democrático eleito pelo seu povo. Tal acção é inaceitável no século vinte e um.»
Ou melhor ainda. Disse Rice, na capital da Geórgia, Tbilisi (também conhecida em português como Tíflis):
«Não estamos em 1968 e na invasão da Checoslováquia, onde a Rússia pode ameaçar um vizinho, ocupar a sua capital, derrubar o seu governo, e ficar incólume. As coisas mudaram.»
Sim. Estamos no século vinte um. Onde apenas os EUA pode ameaçar um país longínquo, usando mentiras para justificar uma guerra, e apesar da falta de sanção das NU, ocupar esse país por tempo indeterminado, fomentando guerra civil, e pilhando os seus recursos. Ah, Israel também pode ameaçar o Irão, mas se quiser tomar alguma acção tem que pedir ao Padrinho.

A propósito do uso de mentiras para justificar a guerra, as evidências vão-se acumulando, mas o governo dos EUA permanece incólume. No seu mais recente livro, o jornalista Ron Suskind, «O Modo do Mundo: uma história de verdade e esperança numa era de extremismo» (The Way of the World: A Story of Truth and Hope in an Age of Extremism) demonstra como antes da invasão, em Janeiro de 2003, os EUA e a Grã-Bretanha reuniram com Habbush, o então chefe da Intelegiência sob Saddam, numa missão secreta desta à Jordânia. Na altura, Habbush revela que não existem armas de destruição massiva (ADMs), que o programa de armas biológicas foi terminado, refutando toda a argumentação dos EUA. Mais, revela que Saddam não acreditava na invasão dos EUA, pois pressentia o Irão como a grande ameaça na região. Por isso temia dar qualquer sinal ao Irão que o Iraque não tinha armas nucleares, e portanto desprotegido.
A reacção da Administração Bush perante estas revelações é de que não ajudam a justificar a invasão. E decidem ignorar a informação de Habbush, evidencias que Saddam havia tentado prender um operativo da al-Qaeda, Abu Musab al-Zarqawi (e que portanto não havia relação Saddam—al'Qaeda—Onze de Setembro, o relatório do embaixador Joe Wilson que concluiu não existirem quaisquer evidências da venda de tubos de alumínio pelo Niger ao Iraque. (Para um mais detalhes sobre o que a Casa Branca sabia e ignorou, e como vendeu a guerra ao povo estaodunidense ver:«Hubris: The Inside Story of Spin, Scandal, and the Selling of the Iraq War» de Michael Isikoff e David Corn.

Na argumentação apresentada nas ONU, Colin Powell fez uso de informações mais convenientes (mais de pouca credibilidade, mesmo no circuito de intelegiência dos EUA), como as obtidas resultantes da tortura no Egipto de Ibn Sheikh al-Libi, membro da al'Qaeda.

Entretanto os EUA invade o Iraque, e Habbush foge para a Jordânia, como previamente acordado. Mas começam então a surgir dúvidas sobre as evidências apresentadas sobre a existência de ADMs, em particular Joe Wilson vem a público dizer que a Casa Branca foi avisada, antes da invasão, que o Iraque não teria comprado os tubos de alumínio ao Niger, que Powell havia mostrado na sua apresentação. Wilson é punido com uma fuga de informação criminosa, no qual a identidade da sua esposa, Valerie Plame, uma agente secreta da CIA, é tornada pública, pondo a sua actividade e vida em risco.

A Casa Branca começa a temer que Habbush revele as informações que havia passado aos EUA e GB. A Casa Branca decide então pagar $5 milhões de dólares a Habbush, inicialmente apenas para o manter calado. Mas no outono de 2003, fazem Habbush falsificar uma carta, datada como sendo de Julho de 2001, de Habbush a Saddam, onde este, num única carta, confirma todas as alegações que os EUA faziam sobre ADMs do Iraque e sobre uma ligação do Iraque a Mohamed Atta, à al'Qaeda e portanto aos ataque do Onze de Setembro. A carta claro depois é alimentada à imprensa, e dá-se um ciclo notícioso de reforço da argumentação da Casa Branca. Na verdade tratou-se de uma manobra criminosa de desinformação do povo estadunidense. O que levantou suspeitas em alguns círculos, incluindo o jornalista Suskind, era o facto da carta ser tão exaustiva, tão conveniente.

terça-feira, agosto 12, 2008

Homenagem a Mahmoud Darwish

Na passada 3ª feira faleceu Mahmoud Darwish, um dos mais importantes poetas árabes contemporâneos, cuja actividade literária e política fizeram dele o poeta nacional da Palestina.

Nasceu em 1942, na vila de Barweh, na Galileia. Com o estabelecimento do Estado de Israel, a Barweh foi arrasada, juntamente com outras 400 aldeias Palestinas, e a família fugiu para o Líbano, tendo depois regressado ilegalmente para a vila vizinha de Dayr-al-Asad. Darwish e a sua família tornaram-se assim refugiados internos sob o regime militar Israelita.
Muito cedo assumiu uma activa vida política e literária activa, e as duas estiveram sempre muito interligadas, sendo referido como o poeta da resistência. Recitava a sua poesia e viajando clandestinamente de vila em vila. Foi membro do Partido Comunista de Israel nos anos 60, depois juntou-se à Organização de Libertação da Palestina. Foi membro do Comité Executivo da OLP, mas pediu demissão devido à assinatura pela OLP dos acordos de paz de Oslo.
Devido às suas actividades, Darwish foi preso repetidas vezes, tendo-se exilado em 1970, primeiramente para a URSS, depois para o Egipto, Líbano e França. Em 1996, foi-lhe finalmente concedido autorização para viver em Ramallah, na Faixa de Gaza.
Publicou mais de 30 volumes de poesia e prosa, traduzida em 35 línguas. O seu primeiro livro de poesia, Aves sem Asas, aos 19 anos de idade. Ganhou um número de prémios durante a sua vida, incluindo o Prémio Lenine da Paz em 1983 e o Prémio de Liberdade Cultural da Fundação Lannan, em 2001. Em Portugal, encontra-se publicado e traduzido pelo Campo de Letras. A sua peosia foi adaptada também para música, incluindo por Marcel Khalife.

Ler e recitar Darwish tornou-se para muitos palestinos e árabes um acto de identificação, de resistência e luta, de reflexão e inspiração.

Ofereço aqui a tradução de um seu poema (a partir do Inglês):

A Menina / O Grito

Há uma menina na costa marítima
E a menina tem uma família
E a menina tem uma casa
E a casa tem duas janelas e uma porta.
E no mar está um barco de guerra jogando um jogo
alvejando os que passeia na costa.
Quatro cinco sete caiem na areia.
A menina é poupada por uma manga de névoa
uma certa manga celestial veio salvá-la.
Ela chama o Pai: meu Pai, vamos para casa, este mar não é para nós.
E o pai não responde.
Ele está deitado ali numa agonia de ausência, envolvido na sua sombra numa agonia de ausência.
Sangue nas suas palmas, sangue nas nuvens,
Os seus gritos voam para longe com ela para a costa e mais alto.
Ela grita na noite da selva
O eco não tem eco
E a menina torna-se no grito eterno de um evento noticioso tornado obsoleto pelo retorno dos aviões
para bombardear a casa com duas janelas e uma porta.

segunda-feira, agosto 11, 2008

As visitas do candidato

Texto publicado n'«O Avante!» Nº 1810, 07.Agosto.2008

O democrata Barack Obama visitou o Médio Oriente e a Europa no mês de Julho. Mais parecia o presidente eleito, e não um candidato: teve encontros com os mais altos dignitários em cada país, foi acompanhado pelos principais pivôs televisivos, e falou perante mais de 200 mil pessoas em Berlim, onde apelou ao derrube dos muros que nos separam, os muros entre países, entre raças e tribos, entre Cristãos, Muçulmanos e Judeus. «Temos de deixar estes muros abaixo», disse.
O líder da Iniciativa Palestina, Mustafa Barghouti, disse que o discurso foi fantástico, mas que «em Berlim já não há um muro. Preferia que ele tivesse feito esse discurso em Jerusalém, na Palestina, onde o muro tem três vezes o comprimento do Muro de Berlim, e é duas vezes mais alto». Obama visitou a Palestina, tendo passado 45 minutos em Ramallah, face às 30 horas passadas em Israel. Disse ainda Barghouti: «preferia que tivesse passado mais tempo no lado Palestiniano. Que tivesse passado algum tempo num campo de refugiados. Não é possível ter uma política nova sobre o Médio Oriente, sem alterar também a política sobre Israel e a Palestina. (...) Desde a iniciativa de Annapolis [de Bush e Rice] a taxa de expansão dos colonatos aumentou 20 por cento, o número de ataques israelitas sobre os territórios aumentaram 300 por cento, 520 palestinianos forma mortos, incluindo 17 crianças».
Durante a campanha das primárias democratas, Obama atacou Bush pela sua estratégia no Iraque, e defendeu um calendário de retirada, nunca sendo demasiado rígido nos detalhes desse plano (quantas tropas seriam retiradas, ao longo de quanto tempo). Obama defende um decréscimo dos actuais 140 mil para entre 30 a 80 mil tropas, ao longo de um período a determinar. Mas nunca uma retirada. Há que louvar a honestidade do candidato republicano McCain, que admite a presença de tropas dos EUA no Iraque durante mais 50 ou 100 anos. Afinal, os EUA mantêm mais de 73 mil tropas na Alemanha, 81 mil no Japão e Correia do Sul, 38 mil no Kuwait(1).

Mudança de estratégia

Mas é importante considerar que o seu plano de retirada do Iraque está intimamente associado a uma escalada militar no Afeganistão e eventualmente Paquistão. A resistência no Afeganistão tem assumido proporções crescentes nos últimos meses. Em Maio e Junho deste ano, faleceram ali mais tropas dos EUA do que no Iraque. A retaliação tem sido selvática. No início deste ano, os aviões da «coligação» lançaram mais de 1.800 bombas e mísseis sobre o Afeganistão, 40 por cento mais que no mesmo período em 2007. Só em Julho, três ataques aéreos dos EUA terão morto 76 civis, incluindo 47 civis, sobretudo mulheres e crianças, que participavam num casamento em Nangarhar. Dados da própria NATO, indicam a morte de mais 900 civis desde o início de 2008.
Obama, durante a sua visita a Cabul, declarou ao presidente Hamid Karazai, que considera o Afeganistão «a frente central na batalha contra o terrorismo», e comprometeu-se a enviar mais dez mil tropas dos EUA para reforçar os 33 mil já presentes na região(2). Mas a situação militar no Afeganistão é talvez ainda mais complexa e difícil que no Irão: o país tem o dobro da dimensão, com terrenos de difícil controlo, onde a guerrilha pode manter posições sem incorrer grandes custos, mas causando desgaste significativo ao ocupante, e possui uma larga fronteira com o Paquistão, local de treino e recrutamento de Talibans.
Por estas mesmas razões, quando nos anos 80 os EUA lograram gerar as condições para atrair os Soviéticos a entrar no Afeganistão, Zbigniew Brzezinski, então conselheiro do Presidente Carter, afirmou «agora temos oportunidade de dar à União Soviética a sua Guerra do Vietnam». Brzezinski é hoje um dos principais conselheiros do candidato Obama, portanto sabe no que se está a meter. Uma escalada no Afeganistão pode envolver ataques em território Paquistanês. Em Janeiro deste ano, Obama declarou claramente que seria favorável a um ataque militar unilateral dos EUA no Paquistão, sem conhecimento do seu governo(3).
Esta mudança de estratégia, do Iraque para o Afeganistão, é facilitada porque o movimento pela paz tem concentrado a sua argumentação sobre as mentiras de Bush para justificar a invasão do Iraque, sem dar suficiente atenção ao facto da invasão e ocupação do Afeganistão ser ilegal e injustificada, conduzida sem autorização das Nações Unidas e à margem da lei internacional. Os EUA tiveram que recorrer a uma operação essencialmente a cargo da NATO, e cujos objectivos, liquidar os Taliban e prender os lideres da al-Qaeda, estão longe de ser atingidos. O Afeganistão vive hoje condições de maior instabilidade, fome, pobreza e violência, que antes da ocupação.
___________________

Notas:
1 http://www.globalsecurity.org/
2 Guardian, 15 de Julho 2008
3 Debate ABC News, 5 de Janeiro de 2008