sábado, dezembro 11, 2010

A língua da Ciência

Não sei quão alastrada é esta opinião, mas já a tenho ouvido por parte de vários cientistas: “a ciência faz-se em Inglês”. Creio que há aqui uma confusão, grave, entre a língua franca na comunidade científica actual e a língua em a ciência se faz. De facto, hoje para se publicar numa revista indexada, prestigiada, lida por outros membros da comunidade internacional; para se fazer uma apresentação nos congressos internacionais relevantes; para acompanhar a literatura especializada, i.e., para se fazer curriculum, há que ler e escrever em Inglês. Há vários exemplos de livros pivôs que não tendo sido originalmente publicados em inglês foram por isso desconhecidos pela generalidade da comunidade científica internacional, e só mais tarde “descobertos”. Na Geologia, há o caso do livro de Alfred Wegener, Die Entstehung der Kontinente und Ozeane, que lançou os fundamentos da tectónica de placas. Na Biologia, há o caso de Will Henning, o pai da cladistica moderna, que escreveu fundamentalmente em alemão. Podemos até recuar mais tarde, para uma época em que o Inglês ainda não era a língua franca que é presentemente: a obra de Gregor Mendel sobre genética, Verhandlungen des naturforschenden Vereins Brünn, publicada em 1866, só foi redescoberta no início do século XX, tendo eventualmente a sua língua original contribuído para a sua obscuridade.
Mas a ciência não se faz em qualquer língua específica, melhor faz-se em qualquer língua. Não é a língua usada que faz com que seja ciência. Aliás a história demonstra que já existiram até várias línguas francas científicas, sendo o Latim o caso mais óbvio. Mas dependendo da área científica, o francês e o alemão já constituíram línguas francas. Um zoólogo vez-se aflito se não souber alemão para aceder a discrição original de muitas espécies. Aliás, por essa razão, no meu programa doutoral, nos EUA, um dos requerimento era um domínio mínimo de uma língua diferente do Inglês. (E os meus exemplos restringem-se à minha área, a Biologia, mas haverão certamente casos noutras línguas.)
Não pretendo refutar as vantagens de existir uma língua franca, embora isso crie desigualdades. Um investigadores, que tendo todo o mérito enquanto cientistas, pode ver as portas da comunidade científica semi-cerradas por falta de um domínio da língua franca. Os revisores das revistas científicas são, infelizmente, um pouco snobs neste respeito. Eu próprio, que sou bilingue e posso, com humildade, dizer que domino o Inglês, já recebi a sugestão de um revisor para ter o meu manuscrito revisto por alguém cuja primeira língua fosse o Inglês, opinião meramente sustentada no facto da minha instituição ser Portuguesa, e não na qualidade da minha prosa em Inglês, garanto-vos.
Levanto esta questão sobretudo porque comunicar ciência não se resume a comunicar no interior da comunidade cientifica. Os jornalistas das secções de ciência escrevem na língua do seu país. Os professores no básico e secundário ensinam nas suas línguas nacionais. Muitas vezes recorrem a estrangeirismos ou (más) traduções, porque desconhecem (ou não existem) termos nas suas línguas nacionais para termos que encontram na literatura científica em Inglês. É responsabilidade das comunidades nacionais desenvolverem uma forma de comunicar ciência na sua língua, para que esta possa ser usada pelos jornalistas e outros divulgadores, pelos professores, pelos políticos, etc.
Confrontei-me com esta questão quando primeiro leccionei, ao nível do ensino superior em Portugal (mas aí menos mal, pois esses alunos precisam de apreender certos termos em Inglês; no entanto frustrava-me não ter as palavras Portuguesas) e na tradução de textos científicos para Português, no âmbito da divulgação. O maior choque e discussão sobre o tema, porém, deu-se no âmbito dos Encontros Nacionais de Biologia Evolutiva, encontros os quais contribui quando regressei a Portugal com o objectivo de reunir os Portugueses (em Portugal e no estrangeiro) que trabalham na área – sendo que me confrontei com uma comunidade que vem ganhando massa crítica mas se encontrava muito fragmentada. Num dos encontros, no Instituto Gulbenkian Ciência, onde trabalham muitos estrangeiros, levantou-se a questão de qual deveria ser a língua dos trabalhos, já que muitos dos estrangeiros não entendiam português. Tenho insistido nestes encontros, que podendo haver alguma flexibilidade, até porque a maior parte dos Portugueses entendem Inglês, que a língua oficial deveria ser o Português. Não por pretender excluir os estrangeiros (que diga-se, estando em Portugal, também podem fazer um esforço para aprender a língua do seu país hospedeiro). Mas porque se tratando de um Encontro Nacional, particularmente dirigido a Portugueses, parece-me que esses são os encontros onde a comunidade científica desta área pode, colectivamente, desenvolver como falar da sua área em Português, e assim desenvolver uma linguagem para a comunicação mais geral da sua área científica. Abundam os encontros científicos onde se fala Inglês. Não me parece despropositadamente patriótico reservar um encontro, explicitamente nacional, onde a língua oficial seja a língua de trabalho. Nem é tal ideia inédita. Outros encontros nacionais científicos realizam-se nas línguas nacionais. Nos encontros mais recentes tem-se optado por um regime misto, deixando ao orador ou apresentador do poster a opção de escolher a língua. Mas o debate dentro da comunidade prossegue. Mas continuo resolutamente a defender que a ciência não tem língua. Só o pode afirmar de forma tão taxativa quem concebe a ciência como isolada na sua torre de marfim. E para mim, a ciência é uma construção humana que deve ser acessível a todos.

Sessão de Homenagem a Carlos AlmaçaAproveito para informar que o VI Encontro Nacional de Biologia Evolutiva terá lugar no dia 22 de Dezembro, na Faculdade de Ciências de Lisboa, e incluirá uma sessão aberta de homenagem ao distinto biólogo e professor, Carlos Almaça, falecido este ano, que por sinal escreveu sobretudo em Português.




Texto publicado no blog Viver a Ciência

2 comentários:

Clara Belo disse...

Gostei muito deste texto. Estou totalmente de acordo contigo. Eu, ao contrário de ti, tive uma facilidade maior com o francês e uma dificuldade maior com o inglês (o que me prejudicou muito na licenciatura, pois a bibliografia como tu sabes, era quase toda americana). Eu divertia-me mais a ler livros de Biologia de biólogos franceses do que ingleses ou americanos (eu abominava a hegemonia do inglês na licenciatura em Biologia). Por isso fui sempre uma "outsider" e acabei por ter uma má média, por falta de motivação e dificuldade em compreender o inglês(eu só tive 3 anos de inglês na escola e 7 anos de francês). Acho que é uma boa causa, defender que a Ciência se faz em várias línguas. Muito bem.

Anônimo disse...

Excelente artigo!
Aprendemos um pouco mais, após esta exaustiva e aprofundada exposição.