sexta-feira, janeiro 17, 2014

referendo sobre co-adpção e adopção

A Assembleia da República, melhor dizendo, a maioria parlamentar do PSD, aprovou hoje uma proposta (da JSD) de referendo com as seguintes perguntas:
1. Concorda que o cônjuge do unido de facto do mesmo sexo possa adoptar o filho do seu cônjuge ou unido de facto? 
2. Concorda com a adopção por casais, casados ou unidos de facto, do mesmo sexo?

O parceiro no governo, o CDS-PP, absteve-se. As bancadas do PS, PCP, BE e PEV votaram contra (com abstenções de dois deputados do PS, António Braga e João Portugal).

Na bancada do PSD observou-se a disciplina de voto. Mas após a votação, separaram-se águas. Teresa Leal Coelho, favorável à coadoção e contra esta questão ser referendada, demitiu-se do cargo. (Ela ausentou-se da votação.) Mota Amaral veio dizer que o referendo "não faz sentido". As deputadas do PSD Carina Oliveira e Francisca Almeida também lançaram críticas. E ainda no seio da maioria governativa, a vice-presidente da Assembleia da República Teresa Caeiro teceu fortes críticas à proposta do governo, classificando-a de "lamentável".

Cabe agora ao Presidente da República decidir a convocação de referendo e se deverá consultar o Tribunal Constitucional. O deputado do PCP, António Filipe, que recentemente se doutorou com uma tese precisamente sobre o "Referendo na Experiência Constitucional Portuguesa", caracterizou a proposta como "absurda e ilógica", na medida que não existe qualquer suporte legislativo, nenhuma proposta de lei (em particular sobre a segunda questão), em torno do qual discutir:  "Como é que se referenda o que ninguém propõe? "

Procuremos separar antes de mais a ideia de referendo do respectivo tema. Sendo um instrumento previsto na Constituição da República Portuguesa, o referendo tem sido usado com moderação. Há até matérias de grande importância nacional, em torno das quais parte significativa da opinião pública exigia referendo por considerar que o governo de então não estava mandatado para decidir, que não foram referendadas. O exemplo mais gritante terá sido o da "Constituição Europeia". Mas vozes populistas propõem referendos a torto e a direito, muitas vezes sem consequências (o presente episódio é nesse respeito uma excepção). Não há necessidade de referendar assuntos para os quais os nossos representantes parlamentares estão legitimados para decidir. Mas mesmo que o tema não tenha sido aflorado pelos programas dos partidos a quando das eleições, e havendo discórdia na opinião pública, avançar ou não para referendo teve ter em conta a importância e urgência da questão.

Há países onde múltiplos assuntos são referendados. Penso em particular ao nível estatual nos EUA, em votações que coincidem com outros momentos eleitorais, algo que a nossa Constituição impede, e creio que justamente. Se o assunto merece ser levado a referendo, então deve haver um debate nacional em seu torno. Este não pode ter lugar em condições se simultaneamente houver campanha para o Parlamento Europeu. No EUA, o sistema de referendos não tem uma história brilhante. O baixo nível de participação das votações de forma geral combinado com falta de informação sobre os assuntos que são referendados, abre-se a grande arbitrariedade de resultados e, mais grave, a resultados fortemente influenciados pelo campo que tem mais recursos e consegue uma campanha de opinião mais forte.

Não podendo (e devendo) coincidir com outras eleições, organizar um referendo em Portugal implica custos. Isso não deve servir de critério para não se realizar um referendo, mas deve condicionar quantos referendos e sobre que temas. E um referendo não é uma sondagem. Deve incluir-se num processo de discussão nacional e estar associado a propostas concretas. Como o António Filipe esclareceu a «legislação portuguesa só prevê o "referendo legislativo" e não o "referendo revogatório"».

Em relação ao tema em si: trata-se de um tema de grande relevância nacional? É um tema sobre o qual decorra discussão nacional? Há urgência na sua resolução? Eu responderia não a estas questões.

Mas procurando dar uma resposta às questões, elas versam duas situações semelhantes, mas com algumas diferenças relevantes. E convém recordar que o casamento homossexual é já uma realidade legal desde 2010, pelo a discussão não deve incluir esta questão. A existência de casais homossexuais é um dado adquirido. A questão é se estes casais devem ter os mesmos direitos que os casais heterossexuais, e se não porquê?

A co-adopção diz respeito à situação em que um dos membros do casal tem um filho e se o outro membro do casal pode formalmente adoptar esse filho. Há dois factos consumados: há já um casal e, contrariamente à segunda situação, há um filho. A principal preocupação deve ser garantir a protecção e direitos desse filho, havendo implicações sobre eventual custódia caso o pai/mãe biológico faleça, ou caso haja separação do casal. Podem imaginar-se todo um conjunto de situações variadas, mas central é também considerar que a co-adopção em casais heterossexuais já existe, e existem todo um conjunto de trâmites para assegurar uma solução, mecanismos esses que podem ser alargados aos casais homossexuais. Pelo que a decisão deste alargamento deve ter em conta a legitimidade de descriminar contra casais homossexuais. A Constituição é clara na afirmação de não-descriminação com base na orientação sexual.

A questão da descriminação deve pesar também na questão da adopção por parte de um casal homossexual. Sendo estes casais reconhecidos, porque não devem ter os mesmos direitos dos casais heterossexuais? Os oponentes à adopção por casais homossexuais (que em geral são também contra o reconhecimento desses casais) referem um suposto direito do adoptado a uma família tradicional e alegam que este não poderá ter um desenvolvimento "normal". Mais uma vez, já existem mecanismos para seleccionar a viabilidade (financeira, psicológica, social) de indivíduos e casais para adoptarem. Esses mesmos mecanismos podem ser alargados, com a vantagem de se aumentar as opções para crianças à procura de adopção. (Verdade seja dita, o aumento quantitativo não deverá ser muito significativo.) Há alguma razão para se pensar que um casal homossexual terá, pela condição de serem do mesmo género, piores condições para acolher uma criança que um casal heterossexual? Os inúmeros estudos sobre a matéria demonstram que não.

Acima referia como indivíduos singulares podem adoptar. Estes são escrutinados antes de serem admitidos como pai adoptivo. Ora, a orientação sexual destes candidatos não deveria ser objecto de descriminação, em conformidade com a Constituição, pelo que um indivíduo singular homossexual poderá adoptar um filho. Não é curioso então que se admita esta situação, mas não a da adopção por um casal homossexual?

Os oponentes desta forma de adopção invocam o espectro da criança poder tornar-se homossexual. Antes de mais, mesmo que assim fosse, não vejo nisso algum mal. Só pode ver-se mal nisso se se considerar que ser homossexual é um mal. Mas mais uma vez, estudos demonstram que esse não é o caso, a probabilidade de virem a ser homossexuais é igual a de crianças com pais heterossexuais. Este medo, sem fundamento em factos, que tentam impingir é um absurdo. Se a sexualidade dos pais (adoptivos ou biológicos) determinasse a sexualidade dos filhos, como explicar que a maior parte de homossexuais foram criados por pais heterossexuais? Crianças que crescem com casais homossexuais têm sim uma outra tendência clara, menor homofobia.

Os oponentes invocam também algo que não é nada evidente: que uma criança necessita de um pai e uma mãe para um desenvolvimento equilibrado. Isto parte de uma visão anacrónica e maniqueísta de papeis de género. A função "paterna" e "materna" pode ser desempenhada por um homem e por uma mulher. Um pai ou mãe solteiro são muitas vezes obrigados a assumir esse duplo papel. Num casal homossexual, cada membro do casal pode assumir esse papel, ou podem ambos assumir os dois papéis. A criança não se desenvolve de forma desajustada por isso.

Ou seja, os receios em torno da co-adopção e adopção por casais homossexuais assenta na ignorância, na intolerância, no preconceito, e num apego à visão tradicional da família, que já foi esquartejada em diversas formas alternativas, mesmo se ignorarmos a questão de género: pais solteiros, padrastos e madrastas, segundos e terceiros padrastos e madrastas, etc.

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