domingo, setembro 11, 2005

Reforma das NU?

A chamada reforma das Nações Unidas (NU) é um dos pontos na agenda da Cimeira Comemorativa dos seus 60 anos, a decorrer esta semana em Nova Yorque. Uma das questões em aberto é a restruturação do Conselho de Segurança (CS), actualmente composto por cinco países com lugar permanente e direito de veto (os P5: China, EUA, França, GB, e Rússia), e dez lugares ocupados por representantes dos diferentes continentes, com rotação cada dois anos. As propostas de alargamento do CS reflectem sobretudo jogos de poder entre nações, e não um genuíno empenhamento em tornar este orgão de decisão mais democrático e transparente. As próprias reuniões dos Grupos de Trabalho das NU para discussão de reforma são fechadas ao público, media e organizações não governamentais, mesmo as acreditadas pelas NU.

Quatro páises (os G4: Alemanha, Brasíl, Japão e Índia) apresentaram uma proposta conjunta de expansão do CS a 25 membros, incluindo seis novos membros permanentes (os próprios G4, e eventualmente dois representantes africanos) e quatro lugares rotativos. Este projecto é oposto pelos rivais regionais dos G4, incluindo respectivamente Itália, Argentina e México, China e Correia do Sul, e o Paquistão (auto-designados Unidos para Consenso), que propõe um alargamento de dez lugares não-permanentes (Modelo Verde). O painel do Secretário-Geral propôs a criação de uma classe intermédia, de semi-permanência, eventualmente de cinco anos (Modelo Azul).

Qualquer forma de alargamento porém arrisca-se a tornar o CS menos eficaz, e eventualmente levar os P5 a formarem um sub-grupo que funcionasse como comité executivo. Isto sem ultrapassar o principal obstáculo ao funcionamento democrático do CS, o direito de veto dos P5, e o uso de chantagem financeira. O Japão, o segundo maior contribuinte para as NU, já demonstra conheçer bem o jogo, ao ameaçar reduzir os seus pagamentos se não lhe fôr atribuído um lugar permanente.

De longe o maior devedor às NU é os EUA, que no final de 2004 devia 241 milhões de dólares, 68% do orçamento regular da NU. Em contraste, este orçamento representa 0,5% do orçamento militar dos EUA, menos que o custo de um único bombardeiro B-2. O peso financeiro desta dívida tem sido repetidamente usado pelos sectores mais conservadores do capital para determinar a política das NU, incluindo a infame saída dos EUA da UNESCO em 1984, por se opôr a medidas que procuravam libertar os media das agências corporativas de notícias, ou a votação unânime (!) do Senado dos EUA em 1994 de suspender o pagamento de 129 milhões de dólares, caso as NU acreditassem a ILGA[1] (o que resultou). O uso do veto financeiro foi mesmo formalizado pelos EUA. Em 1999, o Congresso acordou tornar o pagamento da dívida às NU contingente ao cumprimento dos seus critérios.

A presente ronda de reforma das NU foi precedida de enormes pressões por parte do capital dos EUA e seus lacaios (o governo e os media), incluindo ataques ao Secretário Geral Kofi Annan por possível ligação a um alegado caso de corrupção involvendo o seu filho e o programa de Petróleo por Comida, como se o principal promotor e actor deste programa não fosse os próprios EUA. Think-tanks, como o Cato Institute e a Heritage Foundation, com grande peso na Administração Bush, lançam fortes ataques, descrevendo as NU como uma ameaça à humanidade e as suas resoluções como estrangulando a economia mundial e “forçando a redistribuição dos recursos globais”. Em Abril, o Senado votou diminuir os pagamentos ao programa de manutenção da paz das NU. No verão, o Presidente Bush apontou executivamente John Bolton como embaixador dos EUA às NU, à revilia do Congresso (que ameaçava chumá-lo). Bolton tem um longo historial de hostilidade às NU, e apressou-e a apresentar centenas de emendas ao documento de trabalho das NU, incluindo cortar referências ao Tribunal Criminal Internacional e aos Objectivos de Desenvolvimento para o Milénio (que incluí a meta de cortar para metade a pobreza mundial até 2015, e um comprisso financeiro de 0,7% do PIB para ajuda externa – os EUA contribuem apenas 0,16%).

Enquanto, os EUA se recusa a aprovar tratados tão consensuais como a Convenção dos Direitos da Criança[2], ou tão urgentes como o protocolo de Quioto, não podemos esperar que os EUA contribuam para tornar as NU num organismo ao serviço da humanidade, e não dos seus interesses. Enquanto os P5 puderem usar do poder de veto e do seu peso financeiro, uma verdadeira reforma das NU não será possível. Enquanto resoluções da Assembleia Geral forem sistematicamente ignoradas, o CS não será um orgão democrático e representativo.



[1] ILGA, International Lesbian and Gay Association

[2] O tratado mais rapidamente ractificado e largamente apoiado da história, com 191 nações participantes, à exclusão apenas dos EUA e Sudão.

Publicado no Avante! edição Nº.1660, 22/09/2005

Um comentário:

Aristarco disse...

"Post" muito informativo, interessante e pertinente.

Obrigada e continua!
A.

PS: Posso só sugerir o uso de um corrector ortográfico para o período de readaptação ao português? :)