Quando Alfred McCoy viu a primeira série de fotos revelando o uso de tortura usada pelos militares dos EUA na prisão de Abu Ghraib, excluiu desde logo a tese de que se tratavam de alguns poucas maças ruins, uns pacóvios que fugiram das estribeiras. Reconheçeu logo evidências dos 50 anos de história de uso de tortura pela CIA. A cabeça coberta para desorientação sensorial; a extensão dos braços para dor auto-infligida. Estas duas técnicas simples, usadas em combinação, fazem parte do espólio de tortura da CIA, desenvolvida a grande custo e com participação do mundo académico.
Segundo explica McCoy no seu recente livro "A Question of Torture: CIA Interrogation , from the Cold War to the War on Terror" (Metropolitan Books, 2006), de 1950 a 1962, a CIA gastou mais de um mil milhão de dólares com vista a descodificar a consciência humana, para fins de persuassão de massas e uso de coerção em interrogações individuais. Usaram todo o tipo de métodos: electrochoques, e LSD, mescalina, pentatol de sódio (soro da verdade) e outras drogas. Nada resultava para quebrar a vontade sob interrogação. Fizeram então o 'outsourcing' de estudos às grandes universidades de Harvard, Princeton, Yale e McGill.
A primeira grande descoberta proveio desta universidade. O psicólogo Donald O. Hebb descobriu que é possível induzir o estado de psicose e allucinações no prazo de 48 horas simplesmente através de privação sensorial.
A segunda descoberta proveio da Cornell University Medical Center onde dois neurologistas estudaram os efeitos de dor auto-infligida. Se uma pessoa fôr simplesmente obrigada a ficar de pé, os fluidos começam a acumular-se nas pernas, estas incham, formam-se lesões, que irrompem, a função renal colapsa, e o sujeito sente allucinações. Esta é a base da tortura do sono infligida pela PIDE/DGS. Leia-se a propósito os sintomas descritos por António Gervásio em resultado dos 18 dias de tortura do sono (no excerto da sua intervenção no tribunal plenário criminal da Boa Hora, em 1972, publicado no A Defesa Acusa, edições Avante!).
A combinação destes dois assaltos estabeleceu-se como a base das técnicas de tortura da CIA, a assinatura da tortura ao estilo CIA, e foram codificadas em 1963 no Manual de Contra-Inteligência KUBARK.
Este repertório foi complementado pelo General Geoffrey Miller enquanto chefe da prisão de Guantanamo em 2002, com duas técnias adicionais: ataques sobre a sensibilidade cultural, incluindo sensibilidade religiosa - ataques ao Korão - e de identificação sexual e género; e identificação de fobias individuais. Para este último efeito, criara-se equipas "Biscuit", equipas de consulta das ciências de comportamento (Behavioral Science Consultation Teams). Estas são compostas por psicologos militares que participam durante os interrogatórios e identificam os fobias, pontos psicológicos de maior fraqueza, específicas de cada interrogado, como medo do escuro, ligação à família.
Em Agosto de 2003, o General Miller foi transferido para Abu Ghraib com o fim de aí instituir as técnicas de tortura. O então comandante dos EUA no Iraque, o General Ricardo Sanchez, emitiu ordens para o uso de tecnicas de interrogação para além das permitidas no Manual Militar 3452, e que incluem uma combinação de dor auto-infligida, posições de stress, e desorientação sensorial.
Esta estratégia de tortura faz uso sobretudo do dano psicológico. É assinalável que quando a Convenção Anti-Tortura das NU foi enviada ao Congresso dos EUA para ratificação, incluiu 4 paragrafos de reserva sobre o documento. Essencialmente apontou-se limitar a ratificação dos EUA à tortura física, excluindo referências à tortura psicológica. Embora seja reconhecido que esta forma de tortura deixa cicatrizes mais profundas e duradoura que a tortura física. O próprio Senador John McCain, prisioneiro de guerra durante a Guerra no Vietnam, reconhece que preferiria ser espancado que sujeito a tortura psicológica.
McCain foi aliás um dos proponentes da recente iniciativa do Congresso dos EUA, surgida em dezembro de 2005 na ressaca do escandalo em Abu Ghraib: o Acto de Tratamento de Detidos. Contudo mesmo esta legislação foi corrumpida com emendas. Primeiro, o presidente pode passar por cima da leis e tratados. Segundo, interrogadores da CIA podem usar duas defesas. Se tortura é definida como infligir dor severa, e severa equivale a perda de função de orgãos, como definida num memorando de Jay Bybee, o Procurador-geral Assistente, então tortura mental fica excluida. Por outro, se o objectivo é informação e não a dor, então um torturado pode alegar ser inocente. Por fim, terceiro, Guantanamo foi considerando no Acto como não sendo parte dos EUA.
Não é suficiente dizer que já foram tomadas medidas e julgados alguns militares. O uso de tortura faz parte integrante da prática da CIA e agora dos serviços militares. Apenas alguns militares de baixo patente foram penalizados, mas a responsabilidade provem das mais altas instâncias militares.
terça-feira, fevereiro 21, 2006
Questões de tortura
Posted by
André Levy
at
8:34 PM
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Labels:
EUA
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Um comentário:
Meu caro,
Descobri recentemente o relatório Kubark.
Caso queira ver um exemplo perfeito de aplicação, com sucesso, das técnias lá preconizadas, leia o meu livro autobiográfico "Conquistadores de Almas".
Pinto de Sá
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