segunda-feira, abril 24, 2006

Portugal: Viva o 25 de Abril!

Passados 32 anos sobre o 25 de Abril de 1974, há quem se atreva a afirmar que talvez "um levantamento militar não fosse necessário, só veio gerar instabilidade e confusão, afinal o regime estava a mudar por dentro, com o Marcelo Caetano já o regime era diferente havia maior abertura". Branqueamentos históricas sobre o regime sob Marcelo não merceriam correcção não fosse o facto de mentiras repetidas lentamente se tornarem verdades (lá nisso o Goebels tinha razão), e o enorme disrespeito que tais afirmações prestam, entre outros, aos militares que morreram na guerra durante o Marcelismo, ou aos presos políticos torturados durante esse periodo. Deixo aquí o depoimento de Luís Moita preso às 7h30 do dia 27 de Novembro de 1973, no seguimento do "caso da capela do Rato". Quatro agentes da DGS entraram na sua casa sem mandado de captura e levaram-no para a prisão de Caxias, sem deixarem cópia do auto de apreensão. Moita só foi liberto na madrugada de 26 de Abril. O seu testemunho illustra quão 'brando' se havia tornado o regime de Marcelo.
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1.° DIA - Cerca das 10 horas sou levado para a cadeia do forte de Caxias, indo directamente para uma sala de interrogatório no reduto sul. Logo a seguir, um agente pergunta-me se quero ser tratado como um homem ou como um animal, dizendo-me que têm ordens para actuar sem contemplações e que, quanto a mim, só tinha três hipóteses: ou falar, ou morrer, ou enlouquecer. Menos de meia hora depois da minha entrada na prisão começa o primeiro espancamento: quatro agentes bateram-me ferozmente com matracas (uma delas era de aço em espiral e outras três de borracha dura); atingiam-me sobretudo nos ombros, nos braços, nas nádegas e nas coxas, davam-me murros no estômago e nos intestinos, bofetadas na cara, pontapés, joelhadas... Por muitas vezes caí ao chão e então obrigavam-me a levantar batendo ainda mais bruscamente. Tive alguns desmaios - sem nunca perder os sentidos por completo - até que me atiravam copos de água e assim fiquei todo molhado e rebolava-me no chão também molhado e pouco antes do meio-dia suspenderam o espancamento para o almoço, mas não consegui mais do que comer um pouco de sopa. Levaram-me a tirar as habituais fotografias para identificação e de novo me trouxeram para a sala de interrogatório, onde começaram a agredir-me das formas mais variadas: atiravam-se de calcanhares para cima dos meus pés, davam-me pontapés nas pernas e qualquer agente que entrava me dava bofetadas ou murros.
Tão depressa tremia com frio como sentia imenso calor e de novo tive diversos desmaios de maneira que tinha de me deitar no chão para não cair desamparado. Comecei a sentir suores frios e um agente disse-me que eu estava com péssimo aspecto e então mandaram-me para a cela do reduto norte. Ao fim da tarde comi mais um pouco de sopa e como estava cheio de arrepios mandei chamar a enfermeira-ela pôs-me o termómetro (tinha 37,8) e disse-me que a febre se devia atribuir à reacção do organismo e ao esforço de reabsorção do sangue pisado; teve a enfermeira que me fazer a cama (porque eu não conseguia), deu-me uma aspirina e uma massagem com Hirudoid. Consegui descansar um pouco nessa noite.
2.° DIA -Logo de manhã, fui ao médico a quem me queixei dos hematomas, da febre e da urina avermelhada - ele recusou-se a observar-me e diagnosticou uma gripe! Receitou-me um forte antibiótico que se destinava, obviamente, a prevenir muitas infecções no corpo.
A meio da tarde fui novamente chamado ao reduto sul, para uma sala das brigadas d'a D.G.S. no rés-do-chão, onde tive o segundo espancamento. Se o primeiro tinha sido bastante «científico» (evitavam atingir-me em pontos sensíveis, procuravam, sobretudo magoar), este segundo foi totalmente descontrolado e muito mais violento: agora eram seis agentes com matracas (de metal, de borracha e de madeira), que me batiam em todos os pontos do corpo, incluindo a cabeça e a cara; as pancadas na cabeça produziam uma enorme vibração por todo o corpo; davam-me também murros e bofetadas, chegaram a atirar-me uma mesa para cima; quando estava por terra, metiam-me a matraca na boca e espezinhavam-me cara. Estranhamente, não tive os desmaios da véspera e só pararam o espancamento quando eu, estendido no chão, gritei que me sentia muito mal. Tinha o olho esquerdo totalmente enevoado por causa duma pancada que me tinhaa apanhado o sobrolho e a pálpebra. Continuavam a dirigir-me os piores insultos e ameaças, incluindo a ameaça de me matarem. Deram-me uma almofada para encostar a cabeça sobre uma mesaa e ainda tentei deitar-me no chão para descansar mas não consegui. Trouxeram-me um copo com um líquido verde, dizendo que era Narsan (?) e que fazia bem ao coração. Talvez uma hora depois de acabado o espancamento, tornaram a mandar-me para a cela e como eu mal podia andar um agente arrastou-me pelo corredor fora. Mais tarde, já no reduto norte, veio de novo a enfermeira, que me tornou a dar massagens; tinha menos febre do que na véspera (37,1).
3.° DIA - Arrastando-em muito a custo, vou ao médico da parte da manhã. Era, um médico diferente, que me atendeu correctamente.
Ao princípio da tarde a D.G.S. chama-me novamente para o reduto sul, mas o guarda prisional, ao ver a dificuldade que eu tinha em mexer-me, disse ao agente que eu não poderia ir. Este respondeu que então ficava para depois. Neste terceiro dia de prisão continuei a alimentar-me apenas de sopa, além de um pouco de leite de manhã. Tinha o corpo cheio de hematomas e muitíssimo dorido.
Passada a hora de jantar, tomei um calmante e já estava preparado para dormir quando me vêm buscar para a sala de interrogatório. Desloquei-me apoiado às paredes e era obrigado a frequentes paragens. Comecei então a tortura do sono, numa altura em que não tinha posição possível para o corpo e em que sentia dores intensas, sobretudo nos braços, nas pernas e na região lombar. Passado pouco tempo o corpo começou a inchar da cintura para baixo - apesar de estar quase sem comer, tinha os intestinos muito dilatados e um enorme inchaço na perna direita até ao joelho (que mal me cabia nas calças). Com o andar dos dias, esse inchaço foi desaparecendo e dir-se-ia que passou para os pés apesar de nunca ter feito a tortura de estátua, ao ponto de não aguentar os sapatos e passar a andar descalço.
4.° DIA - Na noite do dia 30 tornei a ser espancado por um só agente, que me bateu com a matraca de aço em espiral, mas este terceiro espancamento foi quase insignificante em comparação com os dois primeiros.
114 HORAS CONSECUTIVAS - Estive seis dias seguidos na mesma sala de interrogatório, sem nunca permitirem que me lavasse. A tortura do sono, porém, durou quatro dias e meio, num total de 114 horas consecutivas - todavia deixaram-me dormir metade da noite do quarto para o quinto dia e toda a noite do quinto para o sexto dia, num pequeno quarto anexo à sala de interrogatório. Embora nunca tivesse alucinações mas apenas algumas perturbações visuais, experimentei com grande evidência as consequências psicológicas desta forma de tortura: o meu estado era de imensa prostração, acompanhada de um progressivo amolecimento da vontade e de um aniquilamento da personalidade. Periodicamente sentia na testa, entre os olhos e sobre o nariz, um enorme peso, como se todo o sono ali se concentrasse; passados instantes atravessava um período em que o corpo se tornava flácido e a voz ficava entaramelada e depois vinha uma espécie de sensação de alívio - era como se tivesse descido um degrau da consciência e o organismo se instalasse numa nova plataforma inferior. Durante a tortura do sono, os agentes escolhiam habilmente o momento psicológico para interrogarem. Cheguei a estar noites inteiras sob interrogatório. Tão grande era a prostração que nem sequer tinha nervoso - só no final de uma noite estive agitado e com taquicárdia, pedi para chamarem um médico e responderam-me que dali só se saía de maca para o hospital.
78 DIAS DE ISOLAMENTO - Além destes seis dias, voltei à sala de interrogatório mais dez vezes, numa média de seis horas de cada vez. Estive 78 dias em regime de isolamento (sem recreios). Só escrevi a primeira carta ao fim do oitavo dia e tive a primeira visita da família após três semanas de prisão.
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[Extraído de "PIDE: a história da repressão, Jornal do Fundão Editora]

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