domingo, dezembro 24, 2006

Portugal condenado a pagar indemnizações pela reforma agrária

"O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou hoje o Estado português a pagar quase dois milhões de euros em 17 acções instauradas no âmbito do processo de indemnizações pela reforma agrária ocorrida após o 25 de Abril." (Público.pt 22/12/06)

Em algumas das notícias televisivas que vi, os pobres latifundiárias lamentavam-se de terem sido lesados pelas expropriações resultantes da reforma agrária. Um até se recordava como em moço a família ficou desprovida do ganha-pão. Qual foi o direito humano infringido pela reforma agrária? Não mais que esse direito fundamental: a propriedade privada.

Não foi surpreendente que nessas notícias não tenha sido explicado o contexto da reforma agrária. Resultado da acção coordenada de centenas de trabalhadores agrícolas, que após décadas de exploração, ocuparam báldios e as terras que trabalhavam, as melhoraram e desenvolveram, tornando-as mais produtivas e dando origem a uma fase (curta) em que Portugal se tornou auto-suficiente do ponto de vista alimentar. Foi a justeza destas occupações que esse direito veio consagrado na Constituição da República de 1976:
Art.97º- 1. A transferência da posse útil da terra e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham será obtida através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas.
Em 1976, estavam já criadas "550 Unidades Cooperativas de Produção (UCPs), ocupando 1,130,000 ha, assegurando 71,900 postos de trabalho, dos quais 45,000 permanentes" [Álvaro Cunhal. 1999. A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se). edições Avante!] Com a ofensiva contra-revolucionária iniciativa com o primeiro governo constitucional, liderado por Mário Soares, foram liquidadas centenas de UCPs, sendo as terras devolvidas aos agrários, e destruidos milhares de postos de trabalho. "Em 1986, já só existiam 302 UCPs/Cooperativas, com 360000 ha e 16810 postos de trabalho. (...) Com as terras foram entregues os agrários importantes melhoramentos fundiários, nomeadamente 31180 ha de terraplanagens, 30 barragens e captações de água, 76 celeiros, 84 instalações de máquinas, 221 instalações de gao e 190 oficinas (...) 52200 bovinos, 176000 ovinos e caprinos, 1786 tractores, 1603 ceifeiras, 1365 motores, 1188 reboques, 130 camiões " (ob. cit.) Trata-se já de uma indemenização e pêras! E recorde-se que este processo foi acompanhado de uma campanha de violência e repressão contra os trabalhadores agrícolas, com a intervenção da GNR e Polícia de Choque.

Com a revisão constitucional de 1989, é alterado o artigo acima citado, ficando consagrado o direito a indemenizações
Art. 97 - 1. O redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto de vista dos objectivos da política agrícola será regulado por lei, que deverá prever, em caso de expropriação, o direito do proprietário à correspondente indemnização e à reserva de área suficiente para a viabilidade e a racionalidade da sua própria exploração.
De frizar também que este não é a primeira indemenização recebida pelos requerentes neste processo. O Tribunal Europeu condenou o Estado Português a pagar um montante de seis por cento das indemnizações base pagas já a nível interno. E quem são os 17 pobres requerentes? Lamentavelmente não estou muita familiarizado com nomes de famílias latifundiárias, mas há um nome que salta à vista: Champalimaud.

Resta apenas perguntar-nos: o que seria preferível uma rede de UCPs empregando milhares de trabalhadores, fixando famílias nas regiões do interior, rentabilizando os sólos e contribuindo para a auto-suficiência alimentar de Portugal; ou, campos abandonados, aldeias envelhecidas, pequenos agricultores que não conseguem competir com a fruta do cú de judas ao preço da uva mijona, a produção de cortiça e celulose nas mãos dos monopolistas do antigamente, uns quantos campos de golfe sugando a água e umas quintas de recreio para as famílias abastadas?

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