segunda-feira, janeiro 29, 2007

Médicos: pelo sim, pelo não

Ontem assisti a uma notícia de uma iniciativa dos "Médicos, por isso não", no qual um médico comentava, que antes das ecografias, uma mulher só aos 3 meses começava a sentir os pontapés, mostrar barriga e portanto a criar uma imagem, uma ideia do ser intra-uterino. Mas, adiantava, com os avanços tecnológicos a futura mãe já pode "ver" o feto e a sua actividade às 8, 9 semanas estabelecendo com ele uma empatia mais cedo. Na iniciativa era mostrada uma ecografia de um feto com 9 semanas como "demonstração" de que já havia vida.

Ora é claro que existe uma forma de vida. Aquilo que na verdade que queria "demonstrar" era que já existiria uma pessoa, com actividade avançada, uma entidade cuja interrupção seria criminosa. Mas as imagens ecográficas vieram dar outra peso a essa realidade (ver), e permitir uma série de interpretações das actividades do feto antes das 10 semanas que não correspondem ainda à fase de desenvolvimento do feto. Ok, o coração bate, mas o sistema nervoso central não está ainda desenvolvido. Como se justificam então as descrições de dor, de sorrisos, senão como interpretações forçadas, que sobrepõem nos estádios iniciais de desenvolvimento comportamentos mais próprios de estádios avançadas, e em alguns casos da criança já nascida? Um exemplo da incongruência destas interpretações é a do feto a bocejar. Ora bocejar é "abrir involuntariamente a boca em sinal de aborrecimento, fome, sono, etc.", entrando e saindo ar. Como é que um feto, envolvido em fluido amniótico, que não respira pelos pulmões, pode bocejar? Os embriões movem-se, por vezes de formas semelhantes às crianças já nascidas, mas não é correcto estarmos a imputar-lhes o mesmo nível de inteligência, consciência, capacidade de percepção, que dos feto de estádios mais avançados. Trata-se de um feto que ainda não sente dor. Sabe-se que os fetos antes do primeiro trimestre não sentem dor (JAMA Vol 294, p.947-) e não sentirão muitos dos sentimentos que nós queiramos desde logo projectar sobre as imagens ecográficas. Daí que apesar das imagens e suas intepretações, a concepção de uma criança intra-uterina no primeiro trimestre é apenas uma projecção. Mas uma que tem consequências. As imagens vieram permitir a empatia com um feto precoce, ao darem azo à identificação com a presença de uma criança, e concomitantemente à separação entre feto e mãe, vista apenas como portadora. A referência ao feto como bébé, ou criança, imputa-lhe uma carga mais forte. O objectivo não é apenas sugerir que existe vida. Se assim fosse não seria necessárias as imagens, ou os eufemismos. O objectivo é sugerir que existe algo equivalente a uma criança humana, na defesa da qual mais facilmente se mobilizam sentimentos. É mais difícil empatizarmos com uma blástula. Mas onde colocar o limite? O mundo civilizado que permite o IVG tem-no colocado no primeiro trimestre, com um comprimisso entre o desenvolvimento de uma nova vida, e o respeito e primazia da vida e saúde, física e psíquica, da mulher.

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