quinta-feira, novembro 11, 2004

América dividida

Que grande banho de água fria.

Nas semanas que precederam as eleições, os democratas e a esquerda acreditaram na possibilidade de vitória. Viam-se galvanizados pela vitória nos debates televisivos, por campanhas de recenseamento que atraíram milhares de novos eleitores e pela crescente crítica à guerra no Iraque e à política doméstica de Bush.

Mas a vitória republicana foi contundente. Nos dias a seguir às eleições, as visitas ao site do Departamento de Imigração do Canadá aumentaram seis vezes. Nem sequer houve estados onde a margem entre os candidatos exigisse recontagem de votos, embora tenham havido várias irregularidades, como os quase quatro mil votos erroneamente atribuídos a Bush pelas máquinas de voto electrónicas, em Columbus, Ohio (1).

Mas os erros comprovados desta vez não chegaram para reverter o sentido das eleições. Bush ganhou o colégio eleitoral e o voto popular. O partido Republicano ganhou lugares no Senado e na Casa de Representantes. No South Dakota, Tom Daschle, o líder da minoria democrata no Senado, não foi reeleito. Em onze estados, ganharam referendos banindo o casamento homosexual.

Numa eleição caracterizada por uma afluência histórica às urnas, Bush pode mesmo gabar-se de ter obtido o mais alto número absoluto de votos de sempre. Bush reclama ter recebido aprovação para a continuação das suas políticas, mas na verdade Bush ganhou apenas 51% dos votos, bastantes para garantir a vitória, mas insuficientes para se gabar de ter o apoio unido do povo estadounidense. Por muito que o novo senador, e esperança democrata, Barak Obama, proclame uma única América, estas eleições revelaram uma população profundamente dividida: regionalmente, politicamente, culturalmente. É ilustrativo que em Manhattan e no distrito de Columbia, onde tiveram lugar os ataques terroristas do 11 de Setembro, Bush tenha recebido menos de 17% dos votos. Mas em vastas extensões do país, o voto republicano, por «valores familiares» e anti-aborto, pela redução do «aparelho governamental», por uma política externa «forte», mobilizado pelas igrejas, convencido pelas rádios conservadoras que Saddam tinha armas de destruição massiva e ligações à Al’Qaeda, veio em largos números decidir pela continuação do líder.

Em algumas corridas a voz anti-Bush logrou vitórias. No Wisconsin, foi reeleito o senador Russ Feingold, um dos senadores opostos desde cedo à invasão do Iraque e o único senador a votar contra o Patriot Act. Na Georgia, no Sudoeste religioso, a democrata Cynthia McKinely, uma das primeiras congressistas a exigir um inquérito aos acontecimentos do 11 de Setembro, regressou à Casa de Representantes. E há que não esquecer que Kerry, apesar de ter perdido, recebeu um número absoluto de votos também histórico. Isto é, embora Bush entre no segundo mandato com o apoio de uma maioria reforçada no Congresso, terá de se entender com uma fracção larga da população militantemente anti-Bush e com uma comunicação social mais escrutinadora.

Futuro sombrio

Que podemos esperar de Bush para este segundo mandato? É costume que durante o segundo mandato o presidente procure determinar como quer ser lembrado. Desenganem-se aqueles que pensam que para Bush tal represente uma postura mais diplomática e conciliatória. Não tendo que preocupar-se com novas eleições, Bush vai querer certamente aprofundar a implementação da sua política cristã e conservadora, incluindo a privatização da Segurança Social, e o refazer do Tribunal Supremo permitindo a ilegalização do aborto. Bush poderá ter oportunidade durante este mandato de nomear 2 ou 3 novos juizes para o Tribunal Supremo, um órgão que nos EUA tem não só poder judicial como poder de cariz legislativo. E para os neoconservadores, os «valores familiares» que defendem internamente estão intimamente ligados à sua política externa evangélica. Frank Gaffney, fundador e presidente do Centro para Política de Segurança, ideólogo neoconservador influente, já delineou o que deverá ser a política externa de Bush neste segundo mandato (2). A lista inclui a destruição de Fallujah e das bolsas de resistência Iraquiana, a «mudança de regime de uma maneira ou outra» [sic] no Irão e na Coreia do Norte, o combate à França/Alemanha que procuram travar a expansão e aplicação do poder dos EUA, ao «Islamofascismo», às políticas «fascistas» da China, ao autoritarismo da Rússia, à emergência de regimes agressivamente anti-americanos na América Latina, e o reforço das forças militares dos
EUA para travar esta «Quarta Guerra Mundial».
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1 Leia-se também os artigos de Thom Hartman, na site commondreams.org, descrevendo a possibilidade de uma substancial fraude na Florida.
2 Center for Security Policy; o artigo de Gaffney, «Worldwide Values», publicado a 5 de Novembro, pode ser lido no site da National Review.

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