quarta-feira, julho 28, 2010

É preciso é cumprir a Constituição, não revê-la

A XI Legislatura, que terminou agora a sua primeira sessão legislativa, destaca-se por poder incluir uma revisão ordinária da Constituição da República Portuguesa (CRP). A Constituição de Abril (aprovada no dia 25 de Abril de 1976) já sofreu várias revisões, à medida que a contra-revolução vai ganhando raízes. Apesar destas, mantém ainda muitos elementos do espírito da Constituição de Abril, incluindo o seu preâmbulo onde ainda consta
«a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.»
O PSD e Passos Coelho já deram voz ao velho desejo da Direita de rever a CRP, dando aso a algumas trocas públicas com Sócrates e membros do PS (e não só). Por exemplo, Santos Silva, Ministro da Defesa, descreveu o ante-projecto como"um manifesto extremista". Os comentários trocados na comunicação social mais parecem rugidos, que apresentação séria de posições. Prova disso mesmo, é que os Portugueses passaram a ser ensurdecidos por quando é que a revisão deve ter lugar, em vez de escutarem um debate público sobre questões de conteúdo.

Não tendo lido o ante-projecto do PSD, tenho apenas acesso a algumas das propostas que saíram em alguns jornais. Uma merece séria atenção: a proposta de retirar o termo "justa causa" por «razão atendível» no que respeita à proibição dos despedimentos. Ora, embora não tenha qualquer formação em Direito, parece-me um princípio de bom-senso jurídico que alterações sejam no sentido de clarificar a legislação, não de torná-la mais ambígua, sobretudo no texto fundamental como é a CRP.

O termo "justa causa" está juridicamente bem definido. Até o ex-ministro Bagão Félix considerou a substituição da expressão totalmente "desadequado". Já Paulo Portas afirmou que “É preciso ajudar o PSD a rectificar o tiro na revisão constitucional”, considerando que “em tempo de crise não é justo falar em liberalizar o despedimento”, mas sim “flexibilizar a contratação” (ver). Não é preciso brincar com as palavras. A introdução de um termo mais ambíguo dá mãos largas ao Capital, que aplaude a proposta do PSD, para retirar direitos e defesas aos trabalhadores. Se já assim, um trabalhador tem de esperar anos até que o Tribunal de Trabalho lhe dê razão e ordene uma indemnização, o que será com um termo ambíguo como "razão atendível".

Outros dois pontos dizem respeito à substituição da expressão "tendencialmente gratuito" dos artigos referentes à Educação e à Saúde, pela frase "Não podendo, em caso algum, o acesso ser recusado por insuficiência de meios económicos." Como passa esse acesso a ser aceite é algo que fica em aberto: mais ambiguidade. Há uma aferição (por quem?) dos meios económicos, e o aluno ou doente é aceite sem ter que pagar, ou paga uma taxa reduzida, ou é-lhe facultado um empréstimo? Ponham-se no lugar de um doente que chega às urgências. Como é que é?

Note-se que o artigo 74º, ponto 2e), ainda mandata "estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino". Relativamente à Saúde, o Art. 64º, ponto 2, da CRP de 1976 falava num "serviço nacional universal, geral e gratuito". É a actual versão da CRP, no mesmo artigo, ponto 2a), que fala em serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito". É portanto reportado um erro quando se refere a expressão "tendencialmente gratuito" no que diz respeito ao ensino. A CRP ainda fala em "progressivamente gratuito". A diferença é subtil mais importante (obg amigo anónimo): progressivamente implica que cada alteração é no sentido de maior gratuitidade, tendencialmente implica que pode haver oscilações (subidas e descidas), mas que a tendência a médio-longo prazo deve ser no sentido de gratuitidade. Mas num sistema político com mandatos de 4-5 anos, quem garante essa tendência. Um governo pode aprovar sucessivas subidas, alegado que serão compensados num futuro (próximo, longínquo?).Veja-se o caso concreto que esta alteração de palavra permitiu nas propinas do Ensino Superior. Desde de que o acesso ao Ensino Superior Público passou a ser "tendencialmente gratuito", alguém se recorda de uma diminuição do valor das propinas, que corrija os aumentos aprovados por governos rosas e laranjas?  Pelo contrário, como os estudantes anteviam, estas têm tendencialmente aumentado, e os Orçamentos Universitários têm tendencialmente diminuído, passando as propinas a assumir um cada vez maior peso no Orçamento (questão agravada agora com as propinas de 2º e 3º ciclo).

Chegar ao ponto de retirar, sob qualquer forma, a palavra "gratuito" é admitir que o Estado deixa de ter como objectivo constitucional tornar o Ensino e Saúde como Sistemas a que categoricamente podem ter acesso quaisquer cidadão. É substituir a noção de um Estado que garante determinadas funções sociais por um sistema de caridade de aplicação ambígua.

Digam logo: não queremos um Estado com funções sociais, que intervenha na sociedade, que garanta direitos fundamentais universais; mas um Estado mínimo, gestor dos impostos, a ser usados ... para quê? Para salvar a Banca? Para comprar submarinos? Para subornar as multinacionais a montarem tenda em Portugal?

3 comentários:

Anônimo disse...

André, eu concordo, claro, mas é ainda mais escandaloso do que dizes. Não te recordas bem, mas, no que respeita ao "progressivamente gratuito" da Constituição, esta não foi revista, é ainda o seu actual Art. 74º, nº 2, al. e). Salvo erro, no caso da saúde, o "tendencialmente gratuito" também não foi revisto, é a formulação (mais fraca, tens razão) do texto original, mas não tenho tempo agora de confirmar.

Reparei que puseste este texto no 5dias, em versão mais curta (uma vez por outra pode vir completo, o problema é ser sempre muito extenso), mas ainda não li. Talvez possas corrigir o texto no caso de teres transposto estes muito pequenos desacertos. (E daí talvez não valha a pena, é contigo.)

Abraço de boas férias do amigo do costume

André Levy disse...

Amigo Anónimo - tens razão, fui confirmar. Obrigado pelo olho sempre alerto. O Art. 74º, ponto 3e) ainda diz "progressivamente a gratuitidade". Não surge a palavra "tendencialmente", embora esta seja a expressão veiculada na imprensa, daí ter pensado que tinha sido revista a expressão.
O Art. 64, referente à saúde, na CRP o ponto 2, referia-se a um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito ...". A versão actual, no ponto 2a), introduz a palavra tendencialmente: "Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito".

Anônimo disse...

Tens toda a razão quanto à saúde. Em vez de uma formulação mais fraca do que para a educação, tinha originalmente uma formulação muitíssimo mais forte. Fazendo a analogia, seria o mesmo que consagrar constitucionalmente a educação como gratuita e não apenas como progressivamente gratuita (recordo-me que em tempos, na década de 90, numa anterior revisão, exactamente para evitar as ambiguidades forçadas e as manipulações do "tendencialmente" e do "progressivamente", o Partido propunha simplesmente uma "educação gratuita").

O amigo do costume