quarta-feira, janeiro 07, 2009

Escudos Humanos?

Sempre que há um conflito entre forças militares organizadas de um Estado contra forças populares autóctones (que podem até ter uma componente uniformizada), surge o argumento dos "escudos humanos" por parte da força beligerante militarizada para justificar a desproporcionalidade dos seus meios e a morte de inocentes. É paradoxal como este argumento é usado para explicar que o adversário não está a jogar consoante as "regras de guerra", como se essas ainda existissem. A Segunda Guerra Mundial é repleta de histórias de trocas de uniformes; uso de militares infiltrados, vestidos à civis; propagação de falsa informação; encenação de bases militares com falsos tanques e aviões. E isso num cenário onde as partes tinham forças militares uniformizadas. Até que se podia dizer que o Alto Comando Nazi, protegido no seu bunker subterrâneo, usou a população de Berlim como um escudo humano.

Os "vietcong" eram acusados de estarem misturados na população civil, justificando assim a destruição de aldeias inteiras e seus campos agrícolas, seja por pelotões no terreno, quer pelo uso indiscriminado de napalm. Mas recentemente, os EUA usarem esse argumento no Afeganistão e Iraque, no bombardeamento de casamentos. O mesmo argumento, agora florido com existirem "armas inteligentes" de grande precisão", e de que existe uma grande preocupação em evitar vítimas civis. Hão-de me explicar como a artilharia naval de Israel sobre um campo de refugiados Palestino é suficientemente inteligente para apenas atingir membros do Hamas ou seus arsenais. Israel pode ser franco. Está a usar forças militares para liquidar um povo já por sí impressionado. Dirão que a culpa é da Autoridade Palestina, por não ter sido suficientemente eficaz e motivada para desmilitarizar os grupos com stocks de armas. Mas nunca foram criadas condições bilaterais que permitissem ao Povo Palestino e à Autoridade Palestina sentir-se autónoma, soberana, independente e livre de novas agressões Israelitas, pelo que nunca foi possível desmilitarizar os grupos que, com muita razão, se preparavam para novos assaltos militares. A Autoridade Palestina não tinha recursos para o fazer, nem argumentos convincentes, porque nunca existiu um efectivo clima de paz, algo muito distinto de um cessar-fogo temporário.

Eu, cidadão português, que vivi a maior parte da minha vida no pós-25 de Abril, aceito que durante o fascismo se tenha chegado ao ponto de conduzir ataques militarizados à estrutura fascista, como um complemento menor à grande tarefa de mobilizar a população (militar e civil) para se levantar e derrubar o regime, como acabou por fazer. Seria, no contexto português, contra ataques a "civis". Mas esse é o meu contexto. Se tivesse vivido toda a minha vida num campo de refugiados, constantemente ameaçado, efectivamente impressionado, sem controle sobre o acesso a água, aos mercados, aos locais de trabalho, sem possibilidade de me descolar livremente dentro do meu território, com checkpoints militares de uma força militar vizinha, com a destruição frequente de casas e terrenos agrícolas, com a morte de vizinhos e familiares; enfim, se vivesse toda a minha vida sob tal clima de violência não sei qual seria a minha reacção, por muito que racionalmente possa dizer, por princípio, aqui sentado ao meu computador, que sou contra ataques a civis como estratégia e táctica. Não estou a fazer a apologia de ataques terroristas a locais de grande concentrações de civis. Apenas a apelar à empatia e solidariedade perante um povo oprimido, e à não utilização de um duplo critério. Se Israel diz o "direito à auto-defesa" para justificar territórios fora das suas fronteiras, que inclui a morte de pelo menos 100 crianças, segundo a organização humanitária Save the Children, então que não se pode negar o "direito à auto-defesa" do povo Palestino de também se defender, com consquências trágicas para civis Israelitas. Há um ciclo vicioso de violência que ou se procura quebrar, trabalhando para construir um clima de paz efectiva, ou as consquências são terríveis. Mas é um ciclo onde as responsabilidades não são equivalentes. Com que direito é que Israel bloqueia os territórios Palestinos, porque não aceita a força política escolhida eleitoralmente pelo Povo Palestino. Num conflito entre um povo opressor e um povo oprimido, a minha solidariedade está perante o povo oprimido, que é o caso do povo Palestino, como qualquer observador objectivo conclui.

Mas voltando novamente à expressão "escudo humano". Procuremos humanizá-lo, em vez de falar no abstracto. Quantos filmes e séries de televisão não têm a cena de um criminoso (ou falsamente acusado) homem que se esconde das forças policiais por detrás de um raptado. Este dilema tem tido várias soluções nas séries dramáticas, que são ensaios hipotéticos de dilemas reais. Há naturalmente variantes. O polícia com pontaria certeira que atinge o raptor, sem que o escudo humano seja lesado. O polícia que dispara sobre o escudo humano, sem o matar, mas deixando o raptor livre para o tiro fatal. Até um filme (cujo nome não me vem à memória) em que o polícia dispara através do escudo humano para atingir o raptor. Estas variantes criativas à parte, na maior parte dos casos, e assim será também, imagino, nos cenários reais, não se toma o risco de que o raptor dispare sobre o "escudo humano", e se for inevitável deixa-se o raptor fugir para se salvar a vida do inocente "escudo humano". Porquê? Por que se dá valor à vida dessa pessoa.

Imputar a culpa ao Hamas, ou seja qual for a organização, de usar escudos humanos e com isso culpabilizá-los pela morte dos inocentes "colaterais", é um argumento que só é possível porque não se atribui valor aos escudos humanos. São vítimas "necessárias" para atingir o raptor, o criminoso, o terrorista. Quando os ataques são feitos à distância, com inteligência pouco segura (sobre a real presença dos ditos criminosos, quantos serão, e quantos serão os escudos humanos), com má precisão no armamento, é porque a morte de civis se tornou por parte do agressor uma abstracção, se esses civis não têm o mesmo valor dos seus compatriotas.

Desde a recente agressão militar Israelita, umas 280 famílias – 1.674 pessoas – refugiaram-se numa escola gerida pelas Nações Unidas, Al Fakhura, localizada no campo de refugiados de Jabaliya. Alguns vindos a pé de locais onde os ataques eram mais intensos no Norte de Gaza. Israel afirmou que uma investigações preliminar indicava que morteiros tinham provindo da esocla, e lançaram morteiros sobre ela, arrassando a escola e matando cerca de 40 pessoas fora da escola, incluindo 10 crianças e 5 mulheres. Os militares israelitas afirmam ter identificado dois membros do Hamas. (o que em si não constitui prova de crime). Mas os afirmam que os morteiros não tinham vindo da escola ou do seu complexo, mas de outro local do bairro. É isto o Hamas usar um "escudo humano", ou é falta de critério e inteligência fidedigna, e uso indiscriminado de violência por parte da IDF?

2 comentários:

Anônimo disse...

E acrescento:

Num quadro de um conflito entre um poderoso exército convencional e um povo como o Palestino, quais as opções aceitáveis para os hipócritas defensores da teoria dos escudos humanos?

1. Não resistir e render-se? Uma opção que sem dúvida agradaria aos agressores!

2. Colocar as forças da resistência (infinitamente inferiores em número e armamento) em campo aberto para o clássico tiro ao pato? E já agora, com os capacetes pintados de tinta fluroscente!

Ou rejeitar a hipocrisia dos agressores e seus apoiantes e:

3. Combater nas condições impostas pelos agressores: nas cidades bombardeadas. E tornando claro que a ocupação militar trará um elevado custo aos agressores!

As crianças mortas em Gaza não são escudos humanos. São vítimas da barbárie nazi do exército israelita. Morrem na sua terra ao lado de quem a defende.

Sérgio Ribeiro disse...

A argumentação dos "escudos humanos" é a hipocrisia levada ao vómito, ao insuportável. A ignomínia de justificar os crimes injustificáveis, a abominável desumanidade.
Lembro o Vietname: se não se encontrava o inimigo em lado nenhum porque ele estava em todo o lado, o que havia a fazer era tudo e todos destruir, tudo e todos exterminar. Foi uma lição não aprendida da História... porque os bárbaros não querem aprender!

Abraços