Hoje terminei uma fase importante de um projecto de grande envergadura. Não está ainda terminado, mas já 𝘦𝘯𝘵𝘳𝘦𝘪 𝘯𝘰 𝘦𝘴𝘵𝘢́𝘥𝘪𝘰. Porque não está terminado, irei omitir vários detalhes específicos.
Mas tenho de voltar atrás no tempo. Entre as muitas coisas que ganhei durante a minha estância dos EUA para realizar o doutoramento, já lá vão quase 20 anos, foi um grande apreço por audiolivros e aulas em formato áudio. Numa altura em que a internet ainda não tinha explodido e diversificado os seus conteúdos, antes do lançamento do Youtube, eu ia à biblioteca pública e trazia cassetes (qual CDs, eram K7s) com a leitura de livros ou com aulas. Durante os longos e solitários períodos de trabalho rotineiro, no laboratório e estufa, ia-me distraindo e instruindo. Durante uma directa a trabalhar, ouvi a versão dramatizada do Senhor dos Anéis. Fui-me habituando a ouvir livros ao adormecer e durante viagens de carro, e a descobrir verdadeiros génios da leitura. Antes de ter visto qualquer dos filmes (e sem ainda ter lido qualquer dos livros), entrei no mundo do Harry Potter através do magistral Jim Dale (verdadeiramente inúmeros). Fui à boleia pela galáxia através das palavras e voz do Douglas Adams. Ouvi e aprendi sobre música clássica com as Great Courses de Robert Greenberg. Etc.
Ao regressar a Portugal, partilhei entusiasticamente essa experiência com audiolivros e lamentava a ausência da sua oferta em Portugal. (No mundo anglo-saxónico, mas também na Alemanha por exemplo, são mercados significativos.) Foi crescendo o bichinho de procurar encorajar essa oferta. Uma escolha que me parecia óbvia era o José Saramago. Escandalosamente, existiam audiolivros do Saramago em várias línguas, mas não em português. A oralidade da sua prosa clamava por uma produção em áudio. Recordo-me vivamente como na adolescência o mundo do Levantado do Chão se ergueu na minha mente quando o comecei a ler em voz alta. A estranha pontuação, que para alguns era um empecilho, tornou-se natural e um auxílio à leitura e interpretação.
A Fundação José Saramago alimentou a ideia, mas não tinha meios próprios para essa produção. Uma tentativa de fazê-lo com uma pequena produtora acabou por não arrancar. A produção de um audiolivro – sobretudo de um livro de literatura, ainda mais com a complexidade dos livros do Saramago – é um empreendimento de monta, que exige tempo considerável. Outros projectos foram-se metendo pelo meio (incluindo leituras dramatizadas de O Ano da Morte de Ricardo Reis, com Mafalda Santos para a Fundação José Saramago), mas o bichinho do audiolivro nunca me abandonou.
Fui procurando ganhar experiência, fazendo algumas oficinas de locução e contar histórias, procurando produzir vídeos lendo contos da literatura portuguesa. Fui também ganhando treino lendo em voz alta para a minha mais fiel ouvinte (obrigado Mia Ferreira). Alguns desafios tornavam-se evidentes. Por exemplo, como criar várias vozes para os vários personagens e mantê-las consistentemente ao longo de uma leitura que se prolonga por várias semanas. Mas também outros desafios técnicos: como conseguir gravar em condições acústicas, sem ter acesso a uma cabine. Só quando se tem a preocupação com a qualidade de gravação é que nos damos conta da quantidade de barulhos no nosso estúdio doméstico: a canalização, o elevador, o cão do vizinho do prédio em frente, a ambulância, a avioneta (!), a nossa barriga a clamar almoço.
A aprendizagem era lenta e estava ainda incompleta quando uma editora mostrou interesse em avançar com um audiolivro do Saramago, a considerando o centenário do seu nascimento. A Fundação José Saramago confiou em mim (obrigado Sérgio Machado Letria e Idália Tiago) e pôs-me em contacto com a editora. As condições eram limitadas. O que me propunham pagar pelas gravações tornava impeditivo alugar um estúdio, ter um assistente durante as gravações, ou ter um engenheiro de som para fazer a edição e tratamento das gravações. Durante o verão passado, gravei os capítulos ao longo de várias semanas, em casa. Produzi as vozes de múltiplos personagem, mas a Mafalda Santos veio dar uma cor feminina. Gravei múltiplas versões do texto, onde o acto de leitura obrigava a incontáveis decisões de interpretação.
Depois houve que editar. Para cada minuto de gravação final, gastei 5-12 minutos a editar, consoante a continuidade da minha leitura (é frequente enganarmo-nos, ou haver um som de boca ou vizinhança que estraga a gravação), se havia diálogo, se o programa de edição começava a empatar. Durante o final de 2022 só consegui avançar cinco capítulos. Já não deu para aproveitar o centenário do Saramago. No começo de 2023, a editora pressionou-me (e bem) para tentar ainda aproveitar este ano lectivo. Os estudantes do secundário sempre foram um público-alvo na minha cabeça: poder com o audiolivro dar um corpo acústico e interpretativo que aliciassem um maior reconhecimento do valor do Saramago.
Nas últimas semanas, trabalhando afincadamente, consegui hoje terminar de montar a gravação da leitura do livro. Enviei para a editora, que agora irá rever as gravações e dar-me nota de correcções que sejam necessárias. Falta depois ainda fazer o tratamento do som, e parir esta criança e haveria muito mais para contar desta gestação. Mais perto do parto, darei mais detalhes.